Está há muito afastado de um dos centros da sua poesia: as mesas dos cafés do Porto, onde costuma passar horas à volta de um papel e de uma caneta, de um poema e de uma ideia, a refazer o já escrito, tantas vezes na companhia de bons amigos, como o poeta e médico, dois ofícios que os unem, Jorge Sousa Braga, com quem também partilha o gosto pela descoberta de novos autores. João Luís Barreto Guimarães confessa-se, por isso, meio melancólico, debaixo de uma nuvem geral que ofusca pensamentos e antigos prazeres. Só não está surpreendido.
O seu mais recente livro chama-se Movimento, e é lançado numa altura em que dele mais estamos privados. Mesmo sabendo que o tinha pronto muito antes da pandemia nos virar a vida do avesso, não é caso, garante, para voltar a celebrar o valor das coincidências. Que toda a literatura é profética, ninguém duvida, e talvez a poesia seja ainda mais capaz, e mais rapidamente, de captar o ar do tempo, o que só a intuição compreende. Vivemos tempos de mutações, alterações, transformações, e a sua poesia também se confronta com isso, tal como com as mudanças que o poeta sente no seu amadurecimento.
Em Movimento, celebra-se, assim, o estar vivo, o que, por outras palavras, é dizer que só se move o que é pleno de vida. Associando lugar e tempo, dois eixos do seu fazer poético, revisita a cadência cíclica da semana em poemas que falam de si, de espaços, de memórias, mas também de política, de raivas e de deuses.
Nascido em 1967, João Luís Barreto Guimarães publicou o seu primeiro livro de poesia em 1989, Há Violinos na Tribo. Foi o início de um percurso que conta já com dezena e meia de títulos, incluindo duas poesias reunidas e uma antologia, e que privilegia o diálogo com outros autores, que não hesita em citar. “A poesia aprende-se com poetas”, garante. “E o poema com o poema”. Com Movimento prossegue também o seu combate literário, que o faz perseguir uma certa ideia de originalidade, numa tentativa de superar sempre o livro anterior.
Jornal de Letras: Comecemos pelo fim. Em Movimento apresenta os seus agradecimentos em verso. Tudo num livro é poesia?
João Luís Barreto Guimarães: Um livro é um objeto, uma oportunidade editorial para se tirar o máximo partido das suas características, quer para fazer poesia, quer para apresentar os poemas. Já coloquei, e não poucas vezes, uma epígrafe no Índice, consciente que estou do significado que essas citações sempre têm, quer ao nível da súmula, quer no da contextualização. Esse poema, que poderá surgir como uma surpresa para o leitor, é um prolongar desta ideia. Neste caso, o poema de agradecimento também se apresenta como uma síntese de todo o livro.
“Aos ossos e/aos músculos do corpo. Ao/ mais pequeno/ movimento.”
Exatamente. É o tema do livro, a celebração da vida, cujo primeiro referente será sempre o facto de nos movimentarmos.
Curioso este seu livro ser publicado num tempo em que os nossos movimentos estão tão limitados.
Talvez seja o lado profético da poesia. A primeira versão do livro foi entregue no final do ano passado, muito antes de saber o que íamos ter pela frente. Fiz alguns acrescentos, pelo que se poderá encontrar uma ou outra referência à pandemia. O contexto atual fez-se mais sentir na escolha da fotografia de capa, que aí, sim, alude às ruas desertas e ao distanciamento social. Não deixa de ser irónico ver como por vezes a Literatura e a Poesia nos proporcionam este tipo de coincidências. Às vezes é um caldo mental que acompanha o espírito do tempo e que faz com que tudo salte cá para fora no momento próprio com alguma exatidão.
Voltando ao agradecimento: é também vontade de ser original?
Nunca a escondi. Como dizia Ezra Pound, “make it new.” Ou seja, não se desperdice toda e qualquer oportunidade para se ser original e criativo. E isso influencia também o desenvolvimento do poema, no sentido de acrescentar valor a cada verso com as palavras a que recorremos. O que me interessa fundamentalmente é a economia e a concentração que o poema pode ter. Daí que, para mim, o poema seja o desenvolvimento de uma ideia lógica que o percorre.
Como um argumento?
Sim. Tudo no poema deve concorrer e convocar essa ideia, sendo depois trabalhado com musicalidade e ritmo, como se fosse uma escultura de som. O poeta checo Miroslav Holub defende até que o poema é um jogo. E como qualquer jogo tem as suas regras, que devem ser cumpridas ou violadas. Com essa ambiguidade pode construir-se e desconstruir-se um campo de leitura muito criativo. Poderia citar ainda outro poeta, Robert Frost, para quem a surpresa inicial deve ser a do escritor, pois só assim se conseguirá surpreender o leitor. A minha procura de originalidade é esta.
Já se tem referido à ideia de um livro superar o anterior.
O poeta deve escrever contra os seus mestres, e tenho vários, mas também deve escrever contra si próprio. Não faz sentido publicar se o autor tiver a sensação de que está a repetir-se, a escrever o mesmo livro, embora haja quem defenda que a isso estamos sempre condenados. Para citar outro autor, William Faulkner apresentava esta questão do seguinte modo: “Escrever é encontrar um ponto de resistência e ir contra ele.” Esse ponto de resistência pode ser o último trabalho que se fez.
Poderemos entender essa perspetiva como uma forma de combate?
E é. Também gosto da ideia de estarmos a escrever o mesmo livro. No caso de um poeta será o da sua poesia reunida, e alguns autores adotaram literalmente esse caminho, acrescentando poemas a sucessivas edições. Mantém-se o nome, mas o conteúdo muda, amplia-se, esculpe-se. As Folhas de Erva, As Flores do Mal, há muitos exemplos.
As poesias reunidas, que nem sempre têm a especificidade dos exemplos que deu, também costumam ser momentos de revisão do que se escreveu.
É a ideia, que também aprecio, de que o poema nunca está terminado, apenas temporariamente abandonado. Não sei se a minha obsessão com a revisão tem alguma relação com o meu lado cirúrgico. Em qualquer dos casos, é uma dimensão que me interessa particularmente. Adicionar versos a um poema não é propriamente aumentar, é diluir. O foco não está no soluto, mas no solvente.
Prefere uma micro-narrativa ao seu prolongamento?
Gosto da ideia de concentração, da elipse, do salto, de dois ou mais pontos que são ligados pelo raciocínio e pela inteligência do leitor. Recuso a facilidade do sentimentalismo, do arredondar ou adicionar. É também por isso que prefiro assentar o poema numa ideia lógica do que numa emocional, apesar destas também estarem presentes.
Antes deste Movimento lançou uma antologia de poemas, O Tempo Avança por Sílabas, que se juntou às duas poesias reunidas que já publicou. Essa noção do fazer do poema, das suas opções e preferências, tornou-se mais consciente?
As entrevistas são sempre uma oportunidade para se teorizar e pensar no processo criativo [risos]. Há uma quantidade infinita de processos que me são inconscientes e que só mais tarde compreendo e identifico. No entanto, com essa antologia a que se refere ficou muito claro que os meus poemas se relacionam de uma forma especial com as ideias de tempo e de lugar. A casa, o café, o país, a viagem, a Europa, uma gradação que vai do local para o geral e do conjunto para o particular. E o tempo surge muitas vezes na forma de capítulos ou cortinas.
Como é que a partir dessas grandes áreas se formam os seus livros?
Vou escrevendo, registando, extraindo significado, que é a primeira tarefa dos poemas, como dizia o Zbigniew Herbert, destapar o mundo, desvelar o indizível, captar o inefável. Eu vivo, movimento-me, escrevo. E, quando tenho 20/25 poemas postos de lado (muitos dos que são escritos ficam pelo caminho), procuro encontrar o mínimo dominador comum desse conjunto.
Como lhe surgiu o denominador comum de Movimento?
Numa visita à Sé Catedral de Braga, junto ao altar de São Martinho de Dume, a quem se deve o nome dos dias da semana.
O que o interessou nesses nomes da semana, atuais e antigos, que dão forma às várias secções do livro?
É muito interessante perceber o que se esconde nos atuais nomes e que em algumas línguas está mais visível. Cada dia corresponde a um deus ou a um astro. O curioso é perceber a sequência. Começa no domingo, com o Sol e a criação. Na segunda é a Lua e a melancolia, na terça, Marte e a guerra, o impulso e a determinação. Quarta é Mercúrio e a inteligência, a negociação e adaptação, na quinta, Júpiter e a Lei, a expansão e a oportunidade. A semana acaba na sexta com Vénus e o amor e a paixão, antes de sábado, Cronos, o tempo e a pausa para reflexão. É um segmento cíclico, que começa na criação, passa pela tristeza, admite impulsos e cedências e acaba nos sentimentos mais exacerbados. Foi uma epifania que me levou a organizar os poemas segundo esta lógica.
Seduziu-o também a ideia de narrativa? A descrição que fez é, por si só, uma micro-ficção.
Exato. Quem quiser pode ver neste livro de poesia uma ficção que se lê em verso, nomeadamente nesta vertente contemporânea de escrita em que o romance comporta a biografia, notas de rodapé e mistura de estilos literários. Para reforçar esse sentimento, os dois primeiros capítulos apresentam aquilo a que se poderia chama a tese, os dois seguintes a antítese e os dois últimos a síntese, com uma reflexão final. A estrutura é sempre muito relevante na forma como penso e apresento um livro, porque uma coisa é escrever poemas, outra é fazer um volume.
E o que o leva a incluir ou excluir um poema de um livro? Apenas a adequação a esse denominador comum?
A linguagem, a base de qualquer poema, é o critério mais importante. O que determina a inclusão de um poema num livro é a capacidade de uma composição plasmar poeticamente o momento que lhe deu origem ou a sua transfiguração.
Há pouco valorizou mais a razão face à emoção. É também isso que está em causa aqui?
Sim. Daí a importância da revisão, com que brinco em O Poema da Véspera. Às vezes abandona-se a escrita com a sensação de ter feito qualquer coisa de fantástico e no dia seguinte sofremos uma enorme desilusão. O poema de agradecimento também faz uma alusão a isso: celebra a inspiração que vem de Dionísio e venera a revisão, dada por Apolo.
* Entrevista publicada no número 1311, de 30 de dezembro de 2020. Nesta versão corrigiram-se dois erros publicados na edição impresa, o referente ao hospital onde João Luís Barreto Guimarães exerce medicina e o nome da sua antologia de poemas, O Tempo Avança por Sílabas.