Luanda Lisboa Paraíso acaba de ser distinguido com um dos mais importantes galardões da língua portuguesa, o Prémio Oceanos, atribuído pela brasileira Itaú Cultural, após já ter recebido os prémios literários Fundação Inês de Castro e Fundação Eça de Queiroz, e integrado a lista de finalistas de outros dois. É a consagração de uma escritora que cruza mundos e géneros, de Angola, onde nasceu, a Portugal, onde cresceu e vive, da leitura ensaística, fruto de uma longa formação académica, à convocação de referências biográficas. É, ainda, a afirmação de um percurso literário singular, assente na ambiguidade dos enredos, das personagens e dos ambientes convocados. A notícia do prémio coincidiu com a chegada às livrarias do seu novo romance, A Visão das Plantas, dois pretextos para esta entrevista
No fim de suspeitas aventuras, com a consciência cheia de pesos e monstruosidades, um capitão regressa a casa. Encontra-a diferente, porque também ele se metamorfoseou. Dos outros receberá distância, porque também eles sabem o que fez. Mas no jardim tudo será diferente. Aí encontrará uma nova razão de vida, talvez uma redenção. Nunca o saberemos, porque da personagem do novo romance de Djaimilia Pereira de Almeida – seria uma novela se esse termo tivesse tradição em Portugal – apenas ficaremos a conhecer a visão das plantas. Do passado não sobrará nenhum julgamento, nem dilemas morais por dirimir. Só o presente interessa, às plantas e também às escritora, que chegou a este capitão, ao capitão Celestino, através de Raul Brandão. Os Pescadores, uma das obras mais famosas do escritor, grande figura da viragem do século XIX para o XX, é um dos livros a que mais vezes regressou. Com o tempo, tornou-se uma companhia, uma obsessão, sobretudo a passagem em que esta figura misteriosa se apresenta. Surgia então A Visão das Plantas, fruto também de uma vontade de voltar a um tema que lhe é caro: as ambiguidades, a indefinição entre quem cuida e é cuidado, entre quem tem tem e responde ao poder. O tema já estava presente em Luanda Lisboa Paraíso, romance que acaba de receber o Prémio Oceanos. Não é distinção pequena. Ao galardão brasileiro, com o valor pecuniário de 27 mil euros, concorreram 1 467 autores. Com várias fases de seleção e diferentes júris, o prémio distinguiu ainda Dulce Maria Cardoso, com Elite, no segundo lugar, e Nara Vidal, com Sorte, no terceiro.
Nascida em Luanda, em 1982, Djaimilia Pereira de Almeida cresceu em Oeiras, onde ainda hoje vive. Tem licenciatura, mestrado e doutoramento em Estudos Portugueses pela Universidade de Lisboa. Estreou-se literariamente com Esse Cabelo, editado pela Teorema, a que se seguiu Luanda Lisboa Paraíso, com chancela da Companhia das Letras. Para a Fundação Francisco Manuel dos Santos escreveu Ajudar a Cair, sobre a paralisia cerebral e o Centro Nuno Belmar da Costa. Na Relógio d’Agua, onde também sai A Visão das Plantas, publicou o volume de dispersos e ensaios Pintado com o Pé. Busca em cada livro “liberdade e alegria”, o “gozo de fazer” e a possibilidade de prolongar questões iniciadas por outros.
Jornal de Letras: O seu gosto pela obra de Raul Brandão era conhecido por ensaios e entrevistas. Quando se tornou matéria literária?
Djaimilia Pereira de Almeida: Leio Raul Brandão desde os tempos da universidade, sempre com um enorme fascínio. Comecei por Húmus e mais tarde, fora das obrigações curriculares, cheguei a Os Pescadores. Talvez seja o livro da Literatura Portuguesa a que mais vezes regressei. Mais do que um livro de que gosto muito, tornou-se uma grande companhia. Quando estava a fazer o mestrado e o doutoramento, lembro-me de ir à Biblioteca Nacional, onde é necessário pedir um livro para ocupar uma das mesas. Invariavelmente, requisitava Os Pescadores.
O que a fascina tanto em Raul Brandão?
A prosa, absolutamente inigualável. Em Os Pescadores, as suas descrições e a vontade de descobrir como as pessoas viviam, o que também encontramos em outros livros seus. Tudo me parecia muito peculiar. Fui lendo, inicialmente só pelo gozo de ler. Mais tarde pensei em escrever sobre o livro, ainda no âmbito universitário. Fiz algumas tentativas. Nunca as concluí. Apesar de ter desistido da ideia, o livro continuou a acompanhar-me.
Voltou agora.
Sim. E ao trocar o ensaio pela literatura também passei a olhar de maneira diferente para Os Pescadores e mais concretamente para a frase que está na origem de A Visão das Plantas. Na verdade, muito do meu fascínio por este livro vem desse excerto. É uma descrição, feita de passagem, muito misteriosa.
Cativou-a o percurso de pirata a santo?
Todo o parágrafo é literariamente prodigioso. Apresenta várias personagens, depois uma em particular, deixando em aberto a possibilidade de equacionarmos que nenhuma delas existiu.
Por ser uma recordação de infância, como Rau Brandão sugere?
Por ser tudo muito vago, sensação reforçada pelos termos usados na descrição. Este capitão Celestino teve uma vida de pirata, cometeu atrocidades e terminou a vida como um santo a cultivar o seu jardim. No fim, há aquela expressão marcante: “Sem uma dúvida na consciência tranquila.” Inicialmente, interessou-me o caso moral, o do facínora que nunca se arrepende, não busca absolvição, nem é castigado.
Como mudou de abordagem?
Ao cruzar-me com a fotografia da capa do livro, retirada do álbum American Prospects, de Joel Sternfeld. Capta, no Alasca, um homem cego no jardim que cultiva. Fiquei presa a essa imagem. Como se guia um cego no seu próprio jardim? Como consegue tratar das plantas? De que maneira a dimensão olfativa o ajuda? Às voltas com estas perguntas regressei à frase do Raul Brandão, mas com uma mudança. A minha atenção deslocou-se da moral, do homem sem castigo, para a construção do jardim, onde ele passa a reforma.
Do julgamento para a compreensão?
Os dois planos estão presentes no livro, mas não se explora o passado, nem as atrocidades. Interessou-me mais um caminho que já explorara em Luanda Lisboa Paraíso, que é pensar as relações assimétricas, nas quais não é claro onde está o poder.
Em que sentido?
Em Luanda Lisboa Paraíso, havia um doente e um cuidador, embora a certa altura se deixe de se saber quem é quem. Neste novo livro também não é claro quem está a dominar e quem está a ser dominado. É a mesma assimetria. Seremos nós que dominamos o jardim que cultivamos e que se torna a razão das nossas vidas, ou será ele que nos passa a dominar?
Será uma redenção que se torna um fardo?
Exatamente. Não perceber quem estava em domínio começou a impor-se, tal como a hipótese de alguém se escravizar pelo simples facto de que o que passou a dar sentido à vida ter exigido todo o seu cuidado e zelo. Aliás, a certa altura escrevo que o jardim tornou-se jardineiro do jardineiro.
Daí também o título: mais do que observadas, são as plantas que observam?
Não sei se as plantas veem, mas o olhar das plantas será certamente sem julgamento. E o livro tenta ver este homem, esta vida, a partir daí. O capitão Celestino não se julgou, nem se sentiu arrependido. O seu jardim foi clemente. Mas a dualidade persiste. As plantas não o julgam, e no entanto já não consegue viver sem elas.
Nunca lhe interessou a ideia de julgar um homem que de certa forma representa uma parte significativa do nosso imaginário marítimo?
Interessou-me mais a ambiguidade. E não gostaria de dizer o que penso sobre esta personagem ou o assunto.
Porquê?
O livro nasce de uma perplexidade, não de uma afirmação. A certa altura diz-se que ele cuidava das plantas, porque ele próprio era uma. As plantas também convergem para a ambiguidade do livro, porque não são propriamente seres angelicais. Sugere-se até um certo lado obscuro.
Um lado obscuro?
Ecoa neste livro uma ideia que ouvi há muito tempo de uma bióloga com quem costumava falar. “Se deixarmos, as plantas dominarão o mundo.” Nunca esqueci esta frase, que evoca uma imagem extraordinária. O lado obscuro, ou maléfico, tem a ver com esta vontade de domínio, que associo a este comandante. A sua relação com as plantas, quando finalmente arranja um jardim, é de dominação, daquele que poda, corta, constrange o crescimento. É a figura do jardineiro como aquele que está a exercer poder.
Dar uma opinião sobre capitão seria tornar este livro mais político?
Gosto de livros sem uma mensagem clara, sob diferentes prismas. Esse é o terreno verdadeiramente fértil. Prefiro as perguntas às respostas. E quando escrevo também procuro multiplicar as questões, mais do que lhes responder. Aliás, enquanto estou a escrever vou mudando muitas vezes de perspetiva, de ponto de vista sobre as personagens, a história e o que estou a dizer. Não tomo partido. Escrever para mim tem a ver com liberdade e alegria.
Essa liberdade e alegria é o que explica livros tão diferentes como os que tem vindo a publicar?
Não sei. Os livros vão aparecendo, não há plano. Retrospetivamente, encontro certos padrões de atenção, uma relação com o momento que estava a viver. Mas não consigo explicar essa diferença. E como já acabei outro livro, sei que vai continuar. Tem certamente a ver comigo, com o meu interesse por muitas coisas.
Mas o movimento de distanciamento do eu e da biografia mantém-se com este livro.
Isso sim, sem dúvida. Esse movimento iniciou-se com Ajudar a Cair. O meu ponto de vista alterou-se. Passei a interessar-me menos pela minha história, muito presente em Esse Cabelo, e a passar olhar para fora. Luanda Lisboa Paraíso nasce dessa alteração, que se concretiza ainda mais em A Visão das Plantas. Acredito que continue assim. Tenciono publicar outros textos, alguns já escritos, de natureza muito diferente, alguns nem sequer no registo de romance. Não ter plano, defender a alegria e a liberdade tem a ver com preservar o gozo de estar feliz a ‘fazer’.
Já ter livros concluídos ajudou-a a receber este Prémio Oceanos, que distingue Luanda Lisboa Paraíso?
Muito! Estou muito feliz por ter tido uma bolsa [de Criação Literária] que me permitiu concluir alguns projetos. Escrever depois de um prémio desta dimensão ia ser muito difícil para mim, como acredito que seja para qualquer pessoa. Não estava nada à espera. Nunca sonhei com uma notícia destas. Já era irreal estar na lista de dez romances finalistas.
Ter sido um prémio cujo centro está no Brasil teve algum significado especial?
Também. O meu primeiro texto publicado saiu numa revista brasileira, a Serrote, do Instituto Moreira Salles, na sequência de um concurso em 2012/2013. Iniciou-se uma relação que se mantém até hoje. Escrevi para outras revistas, tenho livros publicados lá, estou atenta a novos autores. Na minha relação com a língua e literatura portuguesas, interessam-me todas as suas variantes.
Luanda Lisboa Paraíso tem, na verdade, essa dimensão lusófona. Trata de uma passagem de Angola para Portugal, mas facilmente podemos ver nela os movimentos migratórios que ocorreram entre Portugal e o Brasil, Brasil e Angola, e muitos outros.
É a história de uma viagem, o que de algum modo une todos os países que partilham a língua portuguesa. E cada trajeto tem as suas razões, nomeadamente as económicas, mas o que me interessou explorar foi a dimensão sentimental. Temos este homem, Cartola, angolano, que tece toda uma conjetura sobre Portugal antes de cá chegar. Tem uma relação afetiva com o país antes de o conhecer. E também isso me parece comum. A forma como em Portugal se pensa o Brasil, como os brasileiros veem África.
Explora, no fundo, a nossa mitologia comum, às vezes próxima da realidade, outras vezes feita de distorções?
Exatamente. O Cartola tem um imaginário que lhe vem de postais, livros que leu, o que poderia vir a fazer em Lisboa, quem estaria à sua espera, sobre as extraordinárias possibilidade que o aguardavam. É um homem que tem canetas para contratos que um dia há de assinar. Fantasia a sua chegada a um lugar. Nesse sentido, fala-se de Lisboa como se poderia falar de outra cidade qualquer. O livro lida com o confronto entre o imaginário e a realidade.
E podemos ler o livro como uma odisseia de pessoas comuns, a afirmação de que as histórias que merecem ser contada estão à nossa volta?
O importante para mim foi pensar num livro para o Cartola, que aquela personagem tivesse direito a um romance. Assusta-me olhar as coisas a outra escala ou com outras intenções. Tenho, no entanto, uma visão muito otimista sobre a importância de contar histórias e sobre as histórias que há para contar. Não acho que está tudo feito. Acredito que cada pessoa tem uma sensibilidade própria e que traz consigo qualquer coisa de especial.
E de onde nascem os seus livros? De obsessões, como em A Vida das Plantas?
Nem sempre. Este último livro foi mesmo muito particular. Cada livro tem as suas motivações, surgem de impulsos diferentes.
Ao descrever A Vida das Plantas falou na relação entre texto e fotografia.
Muitas vezes começo por aí, por uma fotografia, um quadro, uma imagem. E nos dois primeiros romances chega a haver imagens a meio da narração. É fácil de explicar: está relacionado com o diálogo contínuo que mantenho com o meu marido [Humberto Brito]. Estudámos juntos, somos muito cúmplices. Não seria possível falar de nada do que tenho feito sem o referir. A nossa conversa é muito importante.
Trocam argumentos literários?
Todo o tipo de argumentos. Aconteceu que ele, a certa altura, começou a interessar-se por fotografia. E se durante anos só falávamos de livros, de repente outro elemento entrou na discussão. As imagens apareceram, assim como os livros sobre fotografia, a conversa alargou-se.
Sobre Luanda Lisboa Paraíso também já referiu que resultou de muitas visitas a feiras de antiguidades.
É verdade, foram outras imagens. Sempre gostei de comprar objetos sem valor, muito baratos, pequenas quinquilharias, como se estivesse a compor um enxoval. Quando dei por mim tinha uma quantidade enorme de peças sem relação entre si, mas todas associáveis a um homem.
Estava a compor uma personagem?
Talvez, sem o saber. Na verdade, tinha de tudo, uma mala cheia, roupa, graxa para os sapatos, bandeirolas do Belenenses ou canetas de uma pessoa que não era eu. Muitos desses objetos acabaram citados no romance. As feiras ajudaram-me muito. Continuo a frequentá-las.
Que imagem associa à feiras?
A ideia de coletivo, o que só percebi muito recentemente. Cresci em Portugal ao longo dos anos 80 e 90. Como qualquer criança pensava que a minha casa era especial, tal como a minha família. A loiça onde comíamos era a nossa, onde só nós comíamos. Apenas nós tínhamos aquelas toalhas, aqueles talheres. A minha casa era a minha casa, a dos outros seria a dos outros, diferente. O que nos rodeava não era igual ao de mais ninguém, tinha a certeza. Tudo era especial. E de repente chego às feiras e percebo que a minha avó tinha aquela travessa, o meu avô aquele cachecol. Ficou claro que a vida na minha casa era, afinal, muito parecida com as demais.
Uma ideia boa?
Se pensarmos no presente, a vida que estamos a viver também é muito próxima da das outras pessoas, se calhar muito parecida com a dos nossos vizinhos, mais do que eu possa imaginar. Gosto de me sentir próximo dos outros, dos que vivem no meu tempo.
Escrever também é uma forma de se aproximar dos outros?
Não sei… Ao escrever aproximo-me certamente das pessoas, no sentido em que os livros podem ser lidos, podem vir a ser importantes para uma pessoa em concreto.
E no sentido de se falar de vidas que possam ser comuns a muitas vidas?
Talvez. Mas também aí nada é deliberado. Interessam-me mais aquelas perguntas que se fazem há muito tempo e que continuarão a ser feitas. Vejo na literatura a possibilidade de continuar a preservar essas perguntas, mesmo aquelas que não serão respondidas agora. Manter a pergunta, imaginar que sigo num caminho anterior a mim e que ele continuará.
Nos últimos anos tem publicado sobretudo ficção. A escritora deixou para trás a via universitária?
A universidade é assunto arrumado. Fiz licenciatura, mestrado, doutoramento. Antes de entrar na faculdade, escrevia muito, sobretudo poesia, que nem vale a pena comentar… Mas esse tipo de escrita parou. Foi um tempo de estudo, de aprendizagem. Ainda pensei ficar na universidade, depois do doutoramento, concorri a uma bolsa que não ganhei, tive uma experiência curta a dar aulas, até perceber que não era a minha vocação. Arranjei um trabalho e deixei esse caminho, procurando outro.
De onde vem a sua vocação literária?
Tenho vergonha de o dizer, mas escrevo desde muito pequena. No início eram composições e histórias de encantar. Mas não sei de onde vem. Os meus pais são jornalistas, o que é capaz de ter ajudado, e os meus avós paternos eram também grandes leitores. Discutiam os livros que liam, acompanhavam o que saía, tinham uma relação com o livreiro. Sobretudo o meu avô, que era engenheiro e para quem só a matemática e a literatura interessavam, incutiu-me muito o gosto pela leitura. Ao ponto de ter ficado zangado quando, no ensino secundário, escolhi o ramo das ciências. Achou um disparate. Quando finalmente segui Estudos Portugueses, na faculdade, disse-me: “Eu sempre soube.” Tem tudo a ver com isso, também com muitos bons professores que tive na escola pública, em todas as disciplinas, em particular a Português e História. Não tenho palavras para o que lhes devo.
Quando publicou o primeiro romance associou a escrita à descoberta de si própria. Escrever continua a ter essa força?
Continua. Tenho a sorte – e é mesmo uma sorte – de ter uma família muito internacional, feita de portugueses e angolanos que vivem em muitos outros países. Isso ajudou-me muito, tal como ir no verão a Angola até ao final da adolescência. Não era só passar férias, mas viajar para um país que também é meu, ter primos à minha espera. Não seria quem sou sem essa experiência. O romance Esse Cabelo surgiu no momento em que eu, que sempre vivi em Portugal, comecei a questionar-me sobre as minhas origens. Talvez porque estava numa idade em que normalmente se fazem certas perguntas, talvez porque nunca tinha pensado nisso. Fui dominada por uma inquietação muito grande, comecei a interessar-me por coisas sobre as quais nunca tinha pensado, a ouvir música angolana do tempo em que a minha mãe era jovem. Certamente que tudo o que escrevi depois disso vem dessa busca.