Discreto, passou a vida a dar a conhecer a poética alheia e talvez por isso tenha sido um pouco esquecido. E, no entanto, é voz intensa e constante na poesia portuguesa, da década de 50 do século XX até hoje. Fernando Guimarães, 91 anos, provavelmente o decano dos poetas e ensaístas portugueses em plena atividade, construiu, ao correr de vai para sete décadas, uma obra literária e ensaística sólida, um lugar cativo na Literatura portuguesa contemporânea.
Lugar da Palavra reúne a sua obra poética, num volume recentemente editado pela Editora Afrontamento. São 15 os livros de poemas que publicou, de A Face Junto ao Vento, em 1956, a que se seguiram As Mãos Inteiras, Casa: o Seu Desenho, Na Voz de um Nome, até, mais recentemente, As Raízes Diferentes e A Terra se é Leve, entre outros.
A ficção é nele muito mais rara. Publicou As Quatro Idades, em 1996, e agora O Outro Lado do Desenho, uma edição Imprensa Nacional. São conjuntos de narrativas em que se convoca também a multiplicidade de sentidos das palavras. Tal como acontece na sua incursão na escrita para teatro, em Diotima e Outras Vozes.
No domínio do ensaio, publicou obras de referência como Simbolismo, Modernismo e Vanguardas ou Linguagem e Ideologia. Ao todo, uma bibliografia respeitável de três dezenas de títulos, que mereceram importantes prémios, como o APE de poesia por duas vezes. Porém, não é homem de “blá-blá-blá” e sobre tudo o que escreveu pouco diz. “Não gosto de falar de mim”, adianta ao JL, com uma amável humildade, sempre esquivo ao tom mais pessoal.
Fernando de Oliveira Guimarães nasceu em 1928, no Porto, cidade onde sempre viveu. Licenciou-se em Histórico-Filosóficas, na Faculdade de Letras da Un. de Coimbra, foi professor do ensino secundário, e paralelamente desenvolveu o seu trabalho como crítico literário e ensaísta. Nos anos 50, dirigiu a revista Eros, onde publicou os seus primeiros poemas e posteriormente colaborou em jornais e revistas como O Comércio do Porto, Árvore, Colóquio-Letras, desde há muito aqui no JL. Lugar da Palavra, a mais recente edição da sua Poesia Reunida, depois de outras edições que foram ‘revogadas’ pelo tempo e pela continuidade poética, como diz com ironia, e O Outro Lado do Desenho, os seus últimos títulos desenham o rigoroso “conhecimento” do seu trabalho ‘oficinal’ sobre a linguagem. Sempre com o sentido de uma “unidade expressiva” que tem guiado a sua busca literária.
Jornal de Letras: Lugar da Palavra reúne toda a sua poesia: como a lê hoje num olhar retrospetivo?
Fernando Guimarães: Julgo que procuro, até certo ponto, distanciar-me dela. No que escrevo afasto-me de uma afirmação de natureza subjetiva. A poesia que se escreve acaba por ganhar uma realidade que é de natureza textual. Daí a procura de uma objetividade, que é dada pela imaginação e pelo sentido da linguagem, através da qual a imaginação se revela. É assim que vejo sempre o que escrevo.
E, no princípio, o que o levou a escrever poesia?
Talvez uma necessidade de conhecer. Conhecer de uma maneira diferente, através da imaginação. Alguém disse que a poesia dá a ver. Julgo que o poeta acaba por ver as coisas, a realidade, ele próprio, de uma maneira diferente. É que a imaginação não é desvio ou delírio, na medida em que é sustentada pela linguagem. O ver é também dizer. Escreve-se poesia, afinal, porque se quer ver e dizer.
Na sua obra completa publicou toda a poesia publicada?
O meu primeiro livro, por exemplo, está incluído na presente edição da minha poesia reunida. Está lá porque é esse o seu lugar, embora tenha omitido alguns poemas.
Porquê?
Porque procuro que a poesia que tenho escrito encontre uma espécie de unidade expressiva.
Tem preferência por algum dos seus livros? Em algum se sente mais próximo da que procura ser a sua voz poética?
Não tenho preferências. É por isso que, por vezes, emendo o que escrevo. Talvez haja qualquer coisa que se poderia designar por exigência.
Mais de seis décadas depois, o que é para si a poesia?
Sempre procurei refletir sobre o que é a poesia. Um dos últimos livros de ensaio que publiquei intitula-se precisamente A Poesia é Conhecimento? Repare que o título termina com uma interrogação. A abordagem teórica da poesia, da arte, assume sempre uma dimensão problemática.
Em que sentido?
O conhecimento em poesia não tem o mesmo suporte teórico que poderia ter, por exemplo, a ciência. É um conhecimento que se torna problemático, dado que as evidências a que se chega assumem uma grande diversidade expressiva. O que se diz aparece diferidamente. É aquilo a que os linguistas chamam polissemia, a diversidade de sentidos que cada palavra no poema convoca.
Prosa com direção poética
A prosa é mais rara: qual o lugar da ficção na sua escrita?
Sim, publiquei apenas dois livros de narrativas. É em prosa também um livro onde reuni várias peças teatrais. Intitula-se Diotima e as Outras Vozes. Pelo título logo se vê que há nele uma espécie de direção poética. “Diotima” é uma personagem feminina que está relacionada com o poeta alemão romântico Hölderlin. As “outras vozes” exprimem, afinal, aquela polissemia a que já aludi.
A sua prosa tem sempre uma ligação forte à poesia?
Tem. As narrativas e o teatro que escrevi têm, se não me engano muito, uma dimensão de natureza poética. No entanto, há na linguagem da prosa uma respiração diferente ou outro ritmo. Há um desenvolvimento de natureza significante que não é o da poesia. Por isso, o seu sentido é também diferente. É essa diferença que eu procuro ao escrever.
E na tradução?
Publiquei em livro traduções de alguns poetas como Keats ou Shelley, românticos portanto, e um magnífico poeta contemporâneo já falecido, Dylan Thomas.
Como é que o poeta lê os outros poetas?
Com atenção. É aí que começa a compreensão. Já reparou que se vivêssemos, por exemplo, no séc. XVII ou XVIII, escreveríamos de maneira diferente? Não escrevemos só com a nossa mão, há outras mãos que, de certo modo, nos escrevem. A isso chama-se cultura ou, como dizem os teóricos da linguagem, intertextualidade. Temos de estar atentos a isto para ler os outros poetas. Os do presente e os do passado. Caso contrário, o que se escreve não teria tempo.
E o ato criativo: como lhe acontece um poema?
Não acredito na inspiração. Os teóricos alemães que abriram caminho para o Romantismo, desde Kant a Friedrich Schlegel, falaram muito na inspiração, no génio… Mas acabavam por apagar a dimensão pessoal que essas duas noções sugerem para que se encontrasse uma outra dimensão que era, no caso da literatura, a da própria linguagem ou, melhor, do símbolo que é expresso precisamente pela linguagem.
O poema decorre então do trabalho, da ‘oficina’?
Sim, há uma oficina, um saber fazer. Este saber não obedece a regras, a normas… É, de certo modo, anárquico. É um ato livre e total. Quem o realiza? Não é o poeta enquanto pessoa, enquanto subjetividade. Essa criação, afinal sem criador, ganha uma objetividade.
De que forma?
Uma objetividade textual, entenda-se, e que é dada pela próO pria linguagem, pelo seu ritmo e pelo seu sentido, isto é, pelos seus múltiplos sentidos.
E qual a relação com o mundo?
A relação entre poesia e ideologia, por exemplo, vive de muitos equívocos.
Porquê?
Uma conceção política, religiosa, etc., quando é expressa, assenta em noções ou conceitos cujo sentido tende a ser um só, precisamente o que decorre dessas opções religiosas ou políticas. Corresponde a programas, dogmas, palavras de ordem. Ora cada palavra usada no contexto poético tem sempre múltiplos sentidos. Quer isto dizer, que a palavra em poesia é assumida aleatoriamente? Não. Ela, a palavra, é condicionada ou, melhor, dirigida pelo contexto em que se insere. E esse contexto é o próprio poema.
Continua sempre a escrever?
Continuo. A exigência de que falei há pouco também pode ser necessidade.
Tem pronto um novo livro de poemas?
Já podia publicar o décimo sexto. E estou a preparar um livro que se intitulará Os Outros Movimentos Literários.
Que outros?
Analiso aqueles encontros ou ruturas que ocorrem na nossa literatura, e ocasionalmente nas artes plásticas, a partir do século XIX. Assim, por exemplo, a relação entre o Romantismo e movimentos posteriores, como o Saudosismo, a diferença entre Modernismo e modernidade, a noção pós-moderna de “arte sem obra de arte”, etc. São de facto, múltiplos encontros e ruturas, porque a arte sempre oscilou, ao longo do tempo, entre a unidade e a diferença, alcançando o que pode ser desejável, uma diferença na unidade. J