Uma “grande alegria”, um “privilégio enorme”, uma “felicidade difícil de descrever”. Só não é uma responsabilidade maior, porque essa já Afonso Reis Cabral (ARC) põe em cima de si. Aos 29 anos, é o vencedor da edição deste ano do Prémio José Saramago, atribuído ao romance Pão de Açúcar. É o fim de um longo ciclo, que iniciou há precisamente 20 anos, tinha apenas nove, quando descobriu o encanto da poesia e da escrita. Desde então, tem tentado manter esse encantamento, pureza e inocência. E tem sido bem sucedido. Neste momento, consegue viver só da escrita, depois de passagens pelas editoras Alêtheia e Presença. O seu romance de estreia, O Meu Irmão, foi distinguido com Prémio LeYa, revelando um novo autor. Depois de boas críticas e elogios de outros escritores, a sua segunda narrativa recebe um dos principais galardões portugueses. “Talvez o romance chegue a mais leitores”, brinca. O que não será difícil, a avaliar pela importância do prémio e pelo impacto nas redes sociais da sua caminhada, em maio passado, ao longo da Nacional 2, entre Chaves e Faro, que depois deu origem ao livro de crónicas Leva-me Contigo, lançado em setembro.
O júri do prémio, constituído por Guilhermina Gomes, Ana Paula Tavares, António Mega Ferreira, Nélida Piñon e Pilar del Río, destacou as qualidades literárias da obra, nomeadamente na explorações dos aspetos dramáticos, assim como na sua abordagem humanística (ver nestas páginas texto de Manuel Frias Martins, que lidera o comité executivo e também integra o júri). Com o valor pecuniário de 25 mil euros, e atendendo ao percurso dos anteriores vencedores, o prémio abrirá a porta à edição do romance nos demais países lusófonos e à sua tradução para outros idiomas.
Publicado na rentrée de 2018, Pão de Açúcar é uma revisitação literária de um caso que chocou o Porto e todo o país, em 2006. Gisberta, uma transexual brasileira, foi assassinada por um grupo de jovens, depois de vários dias de macabra violência. Impressionado pelo caso e conhecedor do mediatismo que teve, ARC interessou-se sobretudo pelo “vazio” que encontrou na história. Nunca saberemos o que se passou naquele prédio de obras embargadas, conhecido por Pão de Açúcar. Nem como de uma aparente relação amistosa se passou para uma dinâmica letal de grupo. Entre a empatia e a violência, o escritor constrói um romance que ronda, se aproxima e afasta dos factos, supondo antecedentes e pensamentos, sem fugir da descrição dos encontros fatais. É “uma anatomia da violência”, uma forma de se colocar na pele de personagens muitos “diferentes” de si. Sempre com o objetivo de “fazer arte”. O seu compromisso é com a literatura. “Nada mais importa”, garante.
Jornal de Letras: “Dificílimo ato é o de escrever, responsabilidade das maiores”, dizia José Saramago. Subscreveria a frase?
Afonso Reis Cabral: Sem dúvida. A responsabilidade que sinto é com fazer literatura, arte. Tudo o mais vem por arrasto. Sem essa intenção, nada se justifica. Embora muito diferentes, os meus dois romances têm um substrato de real. Mas sem essa metamorfose seriam coisa chã. Não é o que quero fazer. Gosto de pegar em personagens que são muito diferentes de mim e as levar às últimas consequências.
Saramago era conhecido pela intervenção social. É uma dimensão que também lhe interessa?
Gosto particularmente de ‘mostrar’. Mas também acredito que o leitor tem de ser responsabilizado pela leitura que faz. O seu papel é fundamental. Não quero doutrinar, nem publicar um panfleto. Mas se, com o que mostro, o leitor dá outro passo, fico contente.
Hoje também se pede a opinião dos escritores sobre tudo e sobre nada. Como lida com essas solicitações?
Como uma expressão libertadora: não sei. Na verdade, muitas vezes não sei sobre o assunto, não tenho opinião. Mais vale assumir e falar sobre o que efetivamente sei: a escrita, a literatura.
Diz que descobriu a escrita aos nove anos, publicou um livro de poemas aos 15, o seu primeiro romance aos 24, agora este prémio aos 29. Como tem sido a sua relação com a escrita? Tem passado por muitas mudanças?
No essencial, não. A obsessão e o encantamento são os mesmos. No acessório, pode ter havido mudanças, sim. Durante alguns anos, até aos 27, estive dedicado a outras atividades, como a edição. Comecei a dedicar-me a tempo inteiro à escrita há dois anos. Foi assim que escrevi Pão de Açúcar. Aliás, estava a trabalhar na Presença e demiti-me.
Porquê?
Não queria ter desculpa absolutamente nenhuma para não escrever o livro que tinha na cabeça.
Quis preservar o tal encantamento?
Exatamente. Uma certa pureza, também. Depois de O Meu Irmão continuei sempre a escrever, mas ainda não tinha o rumo de uma história, um romance. Havia uma ideia antiga de recriar ficcionalmente uma viagem até à Alemanha, que fiz aos 13 anos num camião TIR. Mas esse livro ruiu. Estive às apalpadelas até descobrir o Pão de Açúcar. Tinha o livro todo pensado, pois gosto de trabalhar com um esquema, que não chega ao pormenor, mas tem as linhas gerais dos capítulos. E vi-me confrontado com a vontade de escrever. De responder ao encantamento da escrita. Não podia deixar que uma desculpa se metesse no caminho.
O facto de, em 2014, O Meu Irmão ter tido um prémio com impacto, afetou a sua relação com a escrita nos tempos seguintes?
No imediato, não. Mas nos meses seguintes pesou um bocado, não pelo prémio em si, mas pela descoberta do leitor. Até lá, escrevia essencialmente para mim ou para a família – o meu livro de poesia teve uma circulação muito pequena. Mas tudo mudou quando publiquei o primeiro romance. Foi preciso algum tempo e esforço para voltar a escrever sozinho, o que é essencial. Corresponder à tal pureza e encantamento.
Como será agora com o Prémio José Saramago?
Não será diferente. Não afetará em nada.
Como recorda o encontro com a escrita?
Não sei explicar muito bem como aconteceu, mas lembro-me do contexto, até do momento. Com a morte da Amália, há precisamente 20 anos, descobri a dimensão avassaladora da poesia. Os grandes poetas que ela cantava, os fados estavam sempre a passar na rádio. Camões, David Mourão Ferreira, Alexandre O’Neill ou Pedro Homem de Melo. Comecei mais ou menos nesse mês. Tinha nove anos, estava ao pé das escadas em caracol que há atrás da minha casa, e escrevi um poema de rompante, sem grandes explicações. A partir daí, foi um dado adquirido. Sem querer parecer pretensioso, é quase como um traço de personalidade. Se não escrever, não sou eu próprio.
Uma vocação precoce.
Sim. Também tive muita sorte com as minhas professoras, nomeadamente Maria Helena Padrão, Alexandra Azevedo e Maria José Granda, apaixonadas pela literatura e pelas línguas. Foram fundacionais. Às vezes tenho saudades, não dos poemas, mas desse tempo em que tinha uma pasta no computador chamada “alter-ego”, da caderneta que levava para a escola com o que escrevia. É uma inocência que quero manter.
Diz-se que além de uma voz, um escritor tem de encontrar um tema. Foram descobertas simultâneas?
Acredito que encontrei a minha voz quando deixei de a procurar. Quanto à temática, no primeiro livro seria mais ou menos inevitável vir a escrever aquele livro por ter um irmão com Síndrome de Down. Sempre mutatis mutandis.
Foi até sugerido pelo vosso pai.
Sim, quando tinha 14 anos, numas férias, andava a pensar se seria escritor ou poeta, e expressava esse meu desassossego aos meus pais.
Qual era a reação deles?
Cara de poker total. Não sei se sorriam na intimidade, mas apoiavam-me em tudo. Nunca senti a mínima reprovação. O meu pai perguntou-me por que razão não escrevia sobre o meu irmão? Na altura não era possível, porque não tinha nem voz, nem maturidade. Mas a pergunta ficou no meu inconsciente. O livro era uma necessidade, não sei se exatamente como ficou, mas pela sua temática. Pão de Açucar foi um acaso.
Em que sentido?
Não ando necessariamente à procura de histórias baseadas no real. Os escritores são ladrões, é um cliché verdadeiro, tudo pode tropeçar e cair num livro. Na altura, li por acaso uma reportagem sobre os dez anos da morte da Gisberta e intuitivamente senti que havia ali uma história para contar.
Confia na intuição?
Tem comandado, até agora, os meus romances. E já estou com uma intuição para o terceiro. Aliás, tenho de começar a escrevê-lo brevemente, pois já me pesa na consciência. Não é explicável. É um entusiasmo que persiste e ao qual faz sentido responder. Muitas vezes, é uma chama inicial que queima tudo e dá origem a um movimento. E o esforço que se segue continua entusiasmado.
Tanto Pão de Açúcar, como O Meu Irmão, têm lugares muito específicos. Essa geografia, ambiente ou paisagem, são importantes?
Nunca tinha pensado nisso. Talvez isso aconteça porque gosto de saber onde estão as personagens, de as olhar de cima, sabê-las em teatro. Se isso depois transparece ou não no texto é outra coisa.
O que a interessou no caso da Gisberta?
O vazio que percebi que havia. De início, temos três rapazes que encontram a Gisberta num edifício abandonado. Começam a ajudá-la, a dar-he arroz, se calhar a partilhar histórias. Mais tarde, o grupo cresce e começa a via sacra
É o hiato que vai da empatia à violência?
Exatamente. E esse vazio só podia ser preenchido pela literatura. Não se trata de uma reportagem literária, mas de uma anatomia dessa violência, quando o bem coabita com o mal, os dois estão infetados um pelo outro. Isso só se consegue quando se trabalha com total liberdade, quando se procura dar as intenções, a complexidade das personagens e da história através do que as palavras conferem às coisas. É uma massa incontrolável, que ganha vida própria durante a escrita. Não é uma exposição dos factos.
Interessa-lhe também explorar personagens difíceis de compreender ao primeiro contacto?
Sim. Há um esforço de me tornar outro. Não quero remoer ou partilhar as minhas mágoas e desgostos. Isso não é suficiente, nem interessa a ninguém. O importante é descobrir o outro. E se for bem feito, esse outro somos nós.