Diga-se, antes de mais, que a chegada de António Ramos Rosa (ARR) ao catálogo da Assírio & Alvim constitui um dos momentos mais relevantes no que à edição de poesia em Portugal diz respeito. Dispersa por inúmeras casas editoriais, deve-se ter em conta, em todo o caso, que o poeta de O Grito Claro (1958) foi publicado pelas mais importantes chancelas, o que denota, desde a primeira hora, o reconhecimento dos seus pares em relação à novidade da sua obra. Da Portugália à Moraes, da Arcádia à Dom Quixote e destas a editoras como a & etc, a Limiar ou a Caminho, não há dúvidas quanto à centralidade da poética ramos-rosiana no contexto da poesia portuguesa do século XX. Mas, sublinhe-se, é absolutamente relevante que os livros se fixem agora numa editora histórica, a qual, acolhendo a obra do poeta, como que se afirma, em definitivo, como editora guardiã da poesia de novecentos.
A capa apresenta-nos a reprodução de um dos conhecidos desenhos do poeta: um rosto feminino, em traços firmes, mas simultaneamente evanescentes para jogar no paradoxo as possibilidades de significado deste Poesia Presente, título recuperado “de um projeto de antologia não concretizado” e encontrado “escrito a lápis nas primeiras páginas do exemplar” da Obra Poética (vol. III), Respirar a Sombra Viva, como esclarece Maria Filipe Ramos Rosa, responsável pela seleção dos poemas. Assim se presentifica a obra do autor, tornando imperativo o verso “estou vivo e escrevo sol”, lapidar afirmação de uma ideia de poética que se quer presente na historicidade do poético.
O prefácio, assinado por José Tolentino Mendonça é também um momento de presentificação da obra por meio da sondagem ao homem que foi ARR. Aludindo às fotografias que os jornais divulgaram no dia em que o poeta faleceu, Tolentino convida-nos a responder (lendo os poemas, claro está) a uma pergunta radical: “Quem era aquele homem?” É que, na comparação com imagens dos anos 60 e 70, aquele homem, agora com barba cobrindo todo o rosto “como uma explosão de branco”, escreve, não era o mesmo de décadas antes. Daí o enigma. E o prefaciador pergunta “que aventura humana foi a sua?”, procurando cartografar o “caso” do poeta de Volante Verde.
Trata-se de um percurso feito de uma fidelidade total à poesia como resistência contra o que – palavras suas – era a “ditadura do banal”. Eduardo Lourenço, Gastão Cruz, António Guerreiro, Ana Paula Coutinho Mendes, Maria Irene Ramalho são alguns dos leitores críticos da poesia ramos-rosiana convocados no prefácio e a todos é unânime a certeza de ser ARR autor de uma obra que, feita de escassez, rigor e imaginação verbais, nos questiona e coloca um ponto de interrogação quanto aos limites da linguagem através da qual nos dizemos e pensamos (n)o mundo.
O que o leitor poderá encontrar nesta antologia é, portanto, uma das sendas mais esplendorosas das Literaturas (assim mesmo, no plural) do século XX. Podemos ler Ramos Rosa como o poeta “anti-Pessoa”, pela recusa de tudo intelectualizar, procurando antes fazer do texto o lugar onde um regresso à originalidade e aos elementos é sinónimo de uma linguagem despojada da carga cultural, que no inventor dos heterónimos é peso que afunda o “eu” em labirintos conceptuais impeditivos de vivenciar o real na sua autenticidade ou fisicidade. Mas igualmente o podemos ler como criador de um universo em que poesia e filosofia se mesclam, como se o poema se debatesse com a inescapável conceptualização que parece recusar.
Maria Filipe vê bem a importância de poemas estruturantes de uma poética que confirma essa tensão entre vontade de libertação de um excesso de conceitos e a inclinação natural para fazer do poema uma leitura necessariamente filosófica da vida. É o caso do poema “Animal Olhar”, em que o poeta declara a força de uma visão óssea das coisas, uma visão que mergulha na realidade sem querer ter a palavra de permeio: “Meus olhos não fabricam/ a realidade ou tu:/ limpos barcos,/ novidade acesa como a terra viva,/ movimento de braços, amálgama/ exata duna” (p.51).
Nesse sentido, podendo ser anti-Pessoa, ARR aproxima-se de Caeiro, radicalizando o que no poeta-pastor seria o projeto de um regresso à Natureza sem presença do conceito… Em ARR esse regresso é extremo e extremado: implica “ser no olhar o próprio olhar”, não apenas o “olhar nítido como um girassol” que só é nítido na encenação que projeta. Não é de somenos essa fenomenologia do olhar para quem, no ensaio “Estrutura e significação na poesia moderna”, considerou que a criação poética é subalterna do verbo, “senhor absoluto”, força condutora do poema que revela as “impulsões da linguagem” ao ponto de as palavras desobedecerem “às relações gramaticais”. E por isso mesmo é ARR quem declara a poesia como um processo cognoscível não do que se sabe, mas do que está por decifrar.
Regressemos, pois, a Ramos Rosa. Se as palavras são acessíveis em virtude de um estilo que cultiva uma aparente simplicidade, a verdade é que o efeito de multiplicação vocabular como que materializa o poema e faz dele o perímetro onde a palavra procura uma espécie de radicalidade semântica. Significado novo, irradiando no mundo-texto a sua energia imaginante. Num tempo pautado pela mecanicismo mais feroz e pela ditadura da competitividade, escrever como quem pergunta é sempre rejeitar a morte que os totalitarismos impõem ao Homem. Assim ARR compreendeu a poesia: ato de escrever como quem constrói na folha o espaço verdadeiramente original onde uma cosmogonia se recria, pois “quem escreve/ quer juntar-se/ à pedra/ à árvore// e ser através delas/ o tranquilo sopro/ do inominável” (p.213).