“Tenha esperança, continue a acreditar”. Na última conversa que teve com a mãe, João de Melo, 65 anos, deparou-se com as mesmas dúvidas que viu crescer dentro de si. “Como é que será depois de fecharmos os olhos?”, perguntou-lhe a progenitora, numa surpreendente conversa filosófica, como revela ao JL. “Será que Deus está lá à minha espera?”, questionou-se. “Tenha esperança, continue a acreditar”, respondeu o escritor, embora a sua fé tenha há muito entrado em crise. Lugar Caído no Crepúsculo, o seu novo romance, é um confronto com essa descrença e uma tentativa de encontrar uma resposta – irónica, metafórica, literária – para as perguntas que a sua mãe, a quem é dedicado o livro, sentiu necessidade de colocar diante da morte, que o escritor descreve como “muro intransponível”. Das crenças da infância às dúvidas da idade da razão, passando pela Guerra Colonial, que fez em Angola como enfermeiro, e as injustiças do mundo, João de Melo é hoje um agnóstico à procura de respostas. Na sua ficção, interroga-se. +
Nascido em 1949, na Achadinha, São Miguel, Açores, João de Melo é autor de uma vasta obra, que se divide, desde a estreia, com Histórias da Resistência, pelo romance, conto, poesia, poesia e crónica. O Meu Mundo Não É Deste Reino (1983), Autópsia de um Mar de Ruínas (1984) e Gente Feliz com Lágrimas (1988), este distinguido com vários prémios, são algumas das suas obras mais conhecidas. Lugar Caído no Crepúsculo, nas livrarias no próximo dia 4 de novembro, com a chancela da D. Quixote, marca o regresso ao romance, oito anos depois de O Mar de Madrid. Pelo meio houve Divina Miséria, uma novela publicada em 2009, e demasiado silêncio. Esteve uma década em Madrid, como conselheiro cultural na embaixada de Portugal, numa experiência “única”, a que se dedicou de corpo e alma. Os livros, no entanto, pagaram a fatura, ficando em segundo plano. No regresso a Lisboa, reformou-se de professor do Ensino Secundário e bateu à porta da sua linguagem, na esperança de ainda a encontrar à sua espera. E estava. Não tinha mudado, ao contrário do país. Crise, humilhação, arrogância económica – eis o que encontrou de volta a casa. A viagem de Lugar Caído no Crepúsculo, que passa por todos os “não-lugares” do Além, também é uma resposta ao “inferno” em que vivemos. Porque no que toca a Deus e a Diabo, garante João de Melo, que foi seminarista durante seis anos, conhecemos melhor o segundo do que o primeiro.
Jornal de Letras: O que o levou a esta viagem ao Além?João de Melo: Na morte, que é um problema antiquíssimo, a fé é o grande dilema, bem como a impossibilidade de a substituir com qualquer coisa retirada à razão e à inteligência. A perda da fé é uma espécie de orfandade. O Antero de Quental justificava a sua angústia com a educação tradicional, arcaica, e o posterior confronto com a razão e o saber. A certa altura, sentiu-se sem chão. Tive uma experiência semelhante, talvez menos radical e mais distendida no tempo.
Que experiência foi essa?A minha mitologia religiosa é indissociável da morte. Na infância, impressionou-me muito assistir, aos cinco anos, à morte do meu avô materno. O seu olhar era um olhar de loucura. Parecia que me estava a ver e a ver mais qualquer coisa que não lhe agradava. Depois, quando se apagou, senti que uma parte do meu mundo tinha ido com ele. Nunca mais consegui reconstituir esse fragmento. E quando me obrigaram a dar um beijo na testa fria do meu avô, naquele enterro cheio de chuva, comecei a recusar que o destino humano se cingisse a isso. Tinha de haver uma forma de redenção, porque de outra forma pensava que estávamos reduzidos à condição animal.
A religião deu sentido à violência da morte?Eu era um menino muito tranquilo. A ideia de um céu para quem praticava na terra boas ações fazia todo o sentido. A Igreja parecia-me uma instituição boa e justa. Mas de repente revelou-se insuficiente. Deixei de acreditar nas visões terríficas e apocalípticas que os padres despejavam do alto dos púlpitos. “Vais parar às brasas do inferno”, diziam de dedo em riste. Eram palavras que evocavam imagens – almas mergulhadas num fogo eterno, com anjos a puxar por elas. Foi um desarrumo. A ideia de Deus não podia ser aquela.
Um Deus castigador?Sim. Houve um tempo em que me senti filho de Deus, mas hoje parece-me que sou mais pai. Criamos deuses porque na nossa fragilidade precisamos de uma espécie de tutoria para o mundo, de alguém que nos faça esquecer a contingência humana. O Deus que me ensinavam era omnipotente, omnipresente, justo, misericordiosos. Mas pecava por suspeita de inexistência. As coisas aconteciam-me e nunca tive a sua ajuda. Hoje, acredito mais na intervenção da minha mãe, numa espécie de proteção utópica, do que nessa entidade que me foi imposta e condicionou definitivamente a minha vida.
Com este livro quis imaginar o que há do outro lado?Este livro julga o mundo, na tentativa de perceber a nossa desgraça. Em matéria de Deus e de Diabo parece que entre nós há mais de diabólico do que divino. O Além que eu imagino não existe – é uma transposição do nosso mundo. O percurso está invertido – pego no Além e trago-o para cá, dando ao leitor a ilusão de que estou a falar sobre o lado de lá. As pessoas, figuras e entidades que surgem dão corpo a alguma das nossas mais antigas interrogações.
Este livro configura também uma viagem, do limbo ao paraíso…É uma viagem entre fronteiras, um percurso que interroga a vida, indo além dos seus limites e buscando o que pode estar do outro lado. Umas vezes, é a imaginação que trabalha. Outras, são as convicções que põem lá o que desejam. Quem escreveu este livro tentou mover-se num espaço que não é o seu. Fez perguntas mas não encontrou muitas respostas. Por isso, no fim há uma grande deceção. A alma do primeiro personagem procura o seu lugar mas não o encontra. É o meu estado de espírito. Continuo à espera que alguém me ilumine.
Convocou alguns livros e imagens para compor este livro?Não, nem gosto de o fazer. Deixei-me guiar pelo meu instinto criativo. Quis entrar pela morte adentro de olhos bem abertos, ver tudo. Vivi qualquer coisa semelhante quando estive na Guerra Colonial. Um dia fomos acudir a uma emboscada e sabíamos que era habitual haver outra emboscada para a coluna de socorro. Demorámos mais de uma hora a lá chegar e pelo caminho iniciei uma contagem decrescente interior para a morte. Pensava: a minha emboscada pode chegar na próxima curva, no outeiro seguinte, ao fundo da estrada. E questionava-me como é que iria morrer. Foi um exercício muito penoso. Lembro-me de ter concluído que podia morrer mas que não queria que os tiros me acertassem nos olhos. Queria ver a morte de olhos abertos. A emboscada não aconteceu mas a vontade continua.
A decisão do leitor
Um dos aspetos curiosos deste livro é ter colocado o leitor no Purgatório. E alguém chega mesmo a dizer neste livro que escrever é dos “piores ofícios terrenos”. É uma condenação?É qualquer coisa de muito desconfortável. Se pudesse, deixaria de escrever. Mas não consigo. Vivo muito mal com a escrita e pior ainda sem ela. A escrita exige muito, nunca está acabada. Se pudesse, destruía já este livro e voltava a escrevê-lo de novo. Nunca se chega lá. Eu não chego ao que quero, nunca cheguei, em nenhum livro, em nenhum texto. Por isso, prefiro calar-me e dar a palavra ao leitor. É ele que decide o destino dos livros, como aconteceu com Gente Feliz Com Lágrimas.
Que continua a ser o seu livro mais famoso. É verdade. Eu nunca apostei muito nesse livro, que desgraçadamente me está a transformar num romancista de um livro só. Se calhar, até gosto mais de outros. Mas ainda bem que assim é: que o escritor não decide, nem controla. Esse fator surpresa, por mais residual que seja, é fascinante. Nunca se sabe o que está para vir.
Ficou assim tão surpreendido com o sucesso de Gente Feliz Com Lágrimas?A surpresa passa com o tempo, com as sucessivas reedições (vai na 25.ª) e com as diferentes gerações que leem o livro. Mas lembro-me do dia em que o entreguei na D. Quixote. Fugi logo para os Açores porque não queria que o Nelson de Matos o abrisse à minha frente. Estava cansado do livro, exausto. E depois aconteceu o que aconteceu.
Muitos leitores, muitos prémios. Sim. Como foi possível ter acontecido tudo isso com este livro e não antes ou depois? Sempre apostei mais no livro que fez de mim escritor: O Meu Mundo Não É Deste Reino. É a minha primeira ficção com algum fôlego e onde descobri a minha voz, o meu registo, a minha linguagem. E não podemos esquecer que nesse livro, como em qualquer outro, estamos perante a criação de linguagem. As imagens são acessórias.
A roda da Literatura é tão aleatória quanto a “roda da fortuna” do Além, que, como sugere este livro, chega a condenar ao Inferno pessoas que à partida estavam destinadas ao Paraíso?Nem mais. Não há receitas para ir para o Inferno, nem para ir para o Paraíso. Na literatura também não. O importante é o aqui e o agora. A vida é o grande milagre do mundo. Só nos resta viver a 100 % e morrer com a mesma intensidade.
Não publicava um romance há oito anos, desde O Mar de Madrid. Porquê? Estive nove anos em Espanha, onde me entreguei completamente ao meu cargo. Fi-lo com muito gosto, apesar de o meu lado criativo ter sido um pouco prejudicado. Tornei-me um escritor de domingo, o que já não acontecia há muito tempo. No regresso a Portugal, voltei à minha linguagem. Estava com saudades e de alguma forma quis saber se ela tinha ficado à minha espera.
E ficou?Sim. De regresso a casa, reencontrei a minha matriz. Este livro também surge para me afastar de um certo abismo que se abriu como uma tentação com a crise que todos atravessamos.
As mudanças foram muitas?Muitas, profundas e em pouco tempo. Voltei a Lisboa, reformei-me, vi um país em ruínas. Precisei da Literatura para sair do buraco. Este livro trouxe-me de novo para cima. Entretanto já escrevi muitos contos e penso retomar em breve um romance que deixei na página 230. E gostava ainda de escrever um romance sobre os professores. Tenho até um título na cabeça: Animais docentes.
Os professores precisam de ser defendidos? Muito. Anda para aí uma cega-rega contra os professores em particular e contra os funcionários públicos em geral, o que não me parece digno. Estamos num país bisonho e triste. Andamos humilhados e desmotivas. Parece que nos puseram de castigo, acusando-nos de vivermos acima das nossas possibilidades. O grau de destruição da portugalidade assemelha-se ao provocado pelas invasões francesas. Era bom que gritássemos mais.