Uma ida clandestina ao circo determinou-lhe o futuro. Era ainda menino de escola quando o castigo paterno por tal “delito” o obrigou a substituir a leitura e o cinema pela escrita de pequenos contos. Ficou-lhe para a vida. Aos 72 anos, o vencedor da primeira edição do Prémio de Criação Literária da Casa da América Latina (pelo romance O Voo da Rainha, editado em Portugal pela Asa) é um dos escritores e jornalistas mais importantes da América do Sul, em particular da Argentina, o país onde nasceu
Tem sobre a mesa-de-cabeceira um bloco e um gravador em que regista os sonhos. Não o faz por teima ou superstição, mas porque, há alguns anos, aconteceu-lhe começar a construir enredos durante o sono. Assim nasceu O Voo da Rainha, o romance que, em Espanha, valeu a Tomás Eloy Martínez o Prémio Alfaguara e, agora, em Portugal, a primeira edição do Prémio de Criação Literária atribuído pela Casa da América Latina, que veio receber, a Lisboa, a 16 de Janeiro: “Tudo começou com um sonho em que um homem autoritário matava ao mesmo tempo a mãe e a amante, que era o ser que ele mais amava no mundo. Figuras como esta são recorrentes na minha bibliografia já que na Argentina, que sofreu muito com o autoritarismo nos últimos 75 anos, ainda há uma cultura de obediência e submissão. Continuam a existir caudilhos, senhores feudais, porventura mais difíceis de controlar do que os generais”.
O prémio português, confessou durante a cerimónia da sua entrega, causou-lhe uma comoção especial: “Somos filhos de Camões, de Cervantes, de Pessoa e, na nossa diversidade, continuamos ainda a encontrar as raízes da nossa identidade ibérica”, afirmou.
O Voo da Rainha surge também envolto em circunstâncias trágicas: em Novembro de 2000, quando o escrevia, Tomás Eloy Martínez e a mulher, Susana Rotker, de 46 anos, foram vítimas de um atropelamento. O escritor ficou ferido, Susana morreu instantaneamente. “Durante vários meses fiquei em estado de pasmo. Escrever cada palavra era um trabalho de Sísifo e pensei que nunca recuperaria o impulso para retomar o romance”. Em Julho seguinte, chegou a redenção, sob a forma de um novo amor, e Tomás Eloy Martínez reencontrou forças para prosseguir o Voo.
Mais recentemente, foi também um sonho que lhe inspirou El Cantor de Tango, o romance já publicado em vários países (entre os quais França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Holanda) que Portugal provavelmente só conhecerá em 2008: “Sonhei que encontrava, numa livraria de Nova Iorque, uma professora amiga que me falava de um cantor de tango extraordinário, ainda melhor do que Carlos Gardel. Como nos sonhos tudo se passa em simultâneo e não há necessidade de aviões ou de viagens, eu partia imediatamente para Buenos Aires em busca do tal cantor. Andava de bar para bar mas nunca o encontrava, o que me provocava muita angústia. Quando acordei, decidi: se não o posso ouvir em sonhos, ouvi-lo-ei na imaginação. E assim escrevi o livro”.
Nascido em Tucumán, Argentina, em 1934, Tomás Eloy Martínez admite nunca ter resistido a um bom desafio a essa imaginação que tudo pode. Criança ainda, faltou às aulas para ir ao circo. Ao descobrirem a gazeta, os pais foram implacáveis: castigaram-no asperamente, proibindo-o de ler ou de ir ao cinema durante mês e meio: “Pensei então: como posso alimentar a minha imaginação durante este tempo todo? Comecei a escrever pequenas narrativas e descobri que, afinal, a imaginação pode ter uma força muito superior à do cinema”. O seu primeiro emprego foi no jornal de que a família detinha uma pequena quota: “Como os meus pais alimentavam o sonho de me verem assumir a direcção do título, tive de fazer de tudo: comecei por corrigir provas, e, mais tarde, escrevi desde reportagens a críticas de cinema”.
Hoje, quando recorda esses primeiros passos, o escritor frisa a diversidade de registos: “Fiz muitas coisas na vida: escrevi guiões cinematográficos e librettos para ópera, fui jornalista, dei aulas.” De todas essas experiências, guarda a memória de momentos inesquecíveis e algumas lições profissionais: “Nos anos 60, o escritor paraguaio Augusto Roa Bastos e eu escrevemos, em conjunto, muitos guiões para cinema. Creio que, com essa experiência, adquiri muito treino de escrita de diálogos, que é das coisas mais difíceis de fazer em ficção. No cinema, diálogos mal construídos e inverosímeis deitam a perder um filme”.
Circo, cinema e literatura No princípio dos anos 60, Tomás Eloy Martínez começou a consolidar um sólido percurso jornalístico: de 1962 a 1969 foi chefe de redacção do semanário Primera Plana, seguindo-se o posto de correspondente na Europa da Editorial Abril (1969-1970), a direcção do semanário Panorama (1970-72) e do suplemento cultural de La Opinión (1972-1975). No exílio, durante a ditadura militar que governou a Argentina, fundou sucessivamente dois jornais: El Diário de Caracas e Siglo 21, publicado em Guadalajara, México. Já de regresso ao seu país, criou, em 1991, o suplemento literário “Primer Plano” do diário Página/12, de Buenos Aires.
Ao longo de tantos anos e títulos, o jornalista e escritor escreveu milhares de páginas, assinou crónicas, reportagens, entrevistou figuras da maior importância histórica como o general Juan Domingo Péron, chefe de Estado argentino de 1946 a 1955 e de 1973 até à morte, a 1 de Julho de 1974.
Mas a entrevista que mais o marcou foi feita a alguém com muito menos poder: o poeta francês Saint-John Perse (1887-1975): “Foi uma das experiências mais singulares de toda a minha vida. Falámos num lugar quase mágico, um quarto com grandes vidraças sobre o mar. Começámos a conversar por volta das 4 ou 5 da tarde, em Maio. À medida que o sol se punha, a sua imagem desaparecia gradualmente. Só ficava a sua voz na obscuridade, como que a anunciar a morte que veio a acontecer meses depois”.
Dessa experiência quase mística resultou o livro Lugar Común la Muerte (1979). Como bom sul-americano, Tomás Eloy Martinez entrega-se a estas histórias profundamente contaminadas pela lenda e pelo fantástico. O mito maior do panteão argentino Evita Péron, primeira-dama, falecida prematuramente não escapou, pois, à sua curiosidade literária. À sua, de autor, e à de milhões de leitores em todo o mundo já que o seu romance Santa Evita (publicado em 1995) foi traduzido para 36 línguas: “Foi um sucesso completamente inesperado”, afirma, não sem acrescentar: “Penso, aliás, que quando se escreve um livro, sobretudo se for um romance, não se deve fazer para o sucesso. A menos que se seja um fabricante de best-sellers, mas isso não chega sequer a ser literatura”. Na figura e na representação da segunda mulher do general Péron, o escritor encontrou farto alimento para a imaginação: “Eva Péron é um símbolo e uma força histórica muito mais forte do que o marido. Em parte, porque morreu jovem (aos 33 anos, como Jesus Cristo e como Che Guevara, outro grande mito argentino). Mas também porque a obra dela foi um trabalho de paixão e de convicção. Não era uma hipócrita, embora fosse fanática e autoritária. Queria sobretudo reparar todas s humilhações que tinha sofrido. Fora filha ilegítima e, como tal, tratava de casar todas os pares que não estavam legalmente casados. A sua mãe fora costureira mas não tivera dinheiro para comprar uma máquina de costura, então ela dava máquinas de costura às mulheres do povo. Oferecia dentaduras postiças, vestidos de noiva, foi madrinha de milhares de crianças”. O sucesso de Santa Evita premiou a obra formalmente mais ousada do escritor: “Dei-me conta de que, embora soubesse escrever, não usava todos os recursos ao meu alcance: alguns dos quais como a narrativa jornalística ou os guiões do cinema usara abundantemente ao longo da minha vida. Quando li o prólogo do livro de Truman Capote, Música para Camaleões, decidi-me a fazê-lo”. Santa Evita permitiu-lhe ainda levar às últimas consequências “a exploração das zonas de penumbra que há entre a realidade e a ficção”, um dos seus temas caros quer como escritor, quer como jornalista.
“Há ali uma área muito ténue, muito difusa, em que quase não há espaço nem tempo, mas que é, na verdade, onde tudo se joga”.
Paralelamente à carreira jornalística, Tomás Eloy Martínez foi-se afirmando no exigente mundo da literatura sul-americana.
Tornou-se amigo de Gabriel García Marquez (que lhe reviu o manuscrito de Santa Evita), Carlos Fuentes ou Mário Vargas Llosa, o que lhe aumentou a responsabilidade: “Não é fácil tornarmo-nos escritores na Argentina, não só porque os nossos pares são muito bons, mas porque enfrentamos a sombra, por vezes castradora, de Jorge Luis Borges. Imagino que problema idêntico deve colocar-se aos escritores portugueses: como se avança com a sombra de Pessoa? Ou para os mais jovens: como se avança com as sombras de José Saramago e António Lobo Antunes?” A excelência de tais pares, mortos e vivos, não intimidou, porém, Eloy Martínez que, para além de Santa Evita, publicou já os romances La novela de Perón (1985), La Mano del Amo (1995), O Voo da Rainha (2002) e El Cantor de Tango (2005). Esses pares são, aliás, os primeiros a reconhecerem-lhe as qualidades. Para o mexicano Carlos Fuentes, este conjunto de livros representa “a mais terrível e formosa, pontual e imaginativa recreação e projecção literária dessa realidade humana e política a que chamamos Argentina (.) Tomás Eloy Martínez está a escrever a História de um país latino-americano, auto-iludido, que se imagina europeu, racional, civilizado e acorda um dia sem ilusões. Tão latino-americano como a Venezuela ou o México, mais enlouquecido porque jamais se imaginou tão vulnerável (.) Mas a grandeza da obra deste argentino tão enamorado da sua pátria é que a sua obra nos recorda que a Argentina é também a pátria de Sarmiento, Borges, Byoy, Cortázar e Arlt, Gardel e Ginastera (.)” (El Pais, 5.03.02).
Em La Nación, Mário Vargas Llosa considerou Santa Evita: “um mural sociopolítico, uma reportagem, um documento histórico, uma fantasia histérica, uma gargalhada surrealista e um radioteatro terno e comovedor. Tem a ambição decidida que dá impulso aos grandes projectos narrativos, e há nela, sob os alardes imaginativos, um trabalho de formiga e uma destreza consumada para dispor o rico material numa estrutura novelesca que aproveita até ao limite as possibilidades da anedota” (Fevereiro de 1996).
O futuro do jornalismo Neste momento, Tomás Eloy Martínez está a escrever “uma novela sobre a vida quotidiana na Argentina durante a ditadura militar” e, por encomenda de uma editora inglesa, um texto sobre o mito do Olimpo, “tomando três modelos: o de Homero, na Ilíada/Odisseia; o dos nazis glosado por Hitler, pelo arquitecto Albert Speer e pela cineasta Leni Riefenstahl, e o argentino. Durante a ditadura militar, havia um campo de concentração na Argentina que se chamava assim. Para aumentar a perversidade da coisa, havia um letreiro à entrada, onde se podia ler: Os que aqui entram perdem a sua identidade. Os guardas são todos deuses”.
Aos 72 anos, Tomás Eloy Martínez está, pois, bem longe de acalentar projectos de reforma. Na Rutgers University, em New Jersey (Estados Unidos) ocupa o posto de “resident writer” do Departamento de Literatura Latino-Americana, onde escreve e responde a perguntas de alunos de doutoramento. Simultaneamente escreve crónicas para El Pais, New York Times e o argentino La Nación. “Sem imposição de tema, vou escrevendo sobre qualquer filme, livro ou episódio que, por qualquer razão, me impressione.
A crónica é um género que me agrada muito na medida em que permite cruzar, tanto quanto possível, as linguagens do jornalismo e da literatura”. Eloy Martínez está mesmo convencido que o género é mais actual do que nunca neste momento em que a comunicação se transforma de modo radical: “O jornalismo é simultaneamente informação e narração. A primeira já é oferecida em tempo record pela televisão e Internet, o que torna a imprensa cada vez menos imprescindível. Perante isso, temos de estar conscientes de que as pessoas compram jornais para procurar interpretação e que o nosso público será cada vez mais constituído por pessoas cultas e de maior poder aquisitivo”. Será com essa consciência que, a breve prazo, se ocupará da direcção do suplemento literário mais antigo de todo o continente americano, o do diário La Nación. Precederam-no, entre outros, nomes maiores da cultura hispânica como José Martí, Ruben Darío, Ortega y Gasset ou Miguel de Unamuno. Mas, uma vez mais, este homem, a quem apaixonam as zonas mais recônditas da alma, não vira a cara ao desafio nem se deixa intimidar.