Admito que cheguei à leitura de Alice Munro depois de ler umas declarações de Sofia Coppola extremamente elogiosas para a escritora canadiana. Intrigada, peguei em O Amor de uma Boa Mulher, uma das colectâneas de contos de Munro editada pela Relógio d’Água (a outra é Fugas), e deixei-me conquistar pela beleza sóbria da sua prosa. Tão trabalhada na economia da narrativa como na elaboração da linguagem, proporciona ao leitor o mesmo prazer que a leitura de um longo, mas rigoroso poema.
Reincidi, agora com A Vista de Castle Rock, obra de 2006, acabada de lançar no mercado português (uma vez mais com chancela da Relógio d’Água), e não pude deixar de concluir que esta mulher, nascida em Ontário há 79 anos, é porventura uma das melhores prosadoras da actualidade.
Tal como os seus livros anteriores, também este aposta em narrativas breves, buriladas até ao tutano da escrita. Com uma nuance: as histórias aqui desfiadas estão unidas entre si por um fio condutor. “Embora não se tratando de memórias – escreve Alice Munro no prólogo – eram relatos mais próximos da minha vida do que todos os que publicara anteriormente, incluindo os narrados na primeira pessoa. Em anteriores relatos na primeira pessoa, eu tinha-me inspirado em experiências reais, mas depois tratara-as com inteira liberdade (…)”. Neste caso, o que fez “foi algo mais parecido com um relato autobiográfico – explorar uma vida, a minha, mas não de uma forma austera ou rigorosamente factual.”
Descendente de escoceses que, no princípio do século XIX, partiram para o Canadá, movidos, como sempre acontece aos emigrantes, pela miséria pátria e pela miragem que divisavam a partir de Castle Rock, a autora recua até a essas vidas distantes, nascidas numa “paróquia sem vantagens” (como escreve na abertura do livro). A saga, decorrente desse esforço (tanto de pesquisa, como de imaginação), tem a pujança epopeica de O Nascimento de uma Nação, de Griffith. Graças ao poder de envolvimento da autora, sentimos, com as personagens, o desafio do sonho americano, viajamos, paredes meias com a morte, num navio de emigrantes, e movidos pela necessidade de refundar raízes, desbravamos terra incógnita. Viajamos em carros de bois e tememos o Outro, que pode ser a índia que serve de ama a uma criança branca ou o fiel de outra igreja.
Não se pense, porém, que estamos diante de um romance histórico. Para a autora, o tempo da narração é o do seu próprio ADN, o do passado irremediavelmente perpetuado nas gerações seguintes. Os objectos que resistem a mortes e mudanças de morada ou de opções servem-lhe, assim, para “convocar” espíritos de outras épocas e supor o que não ficou registado em cartas e documentos oficiais. No belíssimo epílogo do livro, a autora sublinha esse poder invocador: “E numa dessas casas – não me lembro qual – um mágico batente de porta: uma grande concha de madrepérola que eu reconhecia como um mensageiro vindo de longe e de perto, porque eu podia encostá-la ao meu ouvido – quando não havia ninguém para mo impedir – e descobrir o tremendo pulsar do meu próprio sangue, e do mar.”
Como uma arqueóloga que não esteja submetida à corveia de cientificidade, Munro pega nos vestígios sobrantes e reconstrói o invisível: os gestos com que foram usados e as mãos que os sustentaram por homens, mulheres e crianças, de muitas das quais só lhe chegou um nome e as datas de nascimento e morte, inscritas numa lápide de cemitério: “Todos estes nomes que registei se juntam agora, na minha mente, a pessoas vivas, às cozinhas perdidas, ao polido rebordo de latão dos amplos e imponentes fogões negros, aos escorredores de madeira verde que nunca chegavam a ficar secos, à luz amarela das candeias a petróleo. As vasilhas de natas no alpendre, as maçãs na cave, os tubos das chaminés passando por buracos no telhado, o estábulo aquecido no Inverno pelos corpos e pelo bafo das vacas – essas vacas a que nos dirigimos com palavras que já eram comuns nos tempos das guerras de Tróia. Eia, oh. Eia, oh. O salão frio e encerado onde se colocava o ataúde quando alguém morria.”
Sem medo de enfrentar fantasmas próprios e bem mais recentes, A Vista de Castle Rock chega à actualidade e às viagens que a escritora habitualmente faz com o marido, geógrafo de ofício, entre carvalhos e nogueiras grandes e antigos como os que os pioneiros conheceram na América primitiva. Fechamos os olhos e, por momentos, ouvimos o vento nessas folhas que nunca veremos.
Alice Munro, A VISTA DE CASTLE ROCK. Edição Relógio d’Água, 280 pp, 15 euros, tradução de José Miguel Silva