Não terá ainda ocorrido na história nacional uma outra figura que tenha deixado um sulco tão profundo e duradouramente polémico como Sebastião José de Carvalho e Melo, mais conhecido por Marquês de Pombal (1699-1782). A sua presença está perpetuada no corpo e na alma de Portugal.
Fisicamente, na mais nobre face da Lisboa que recebeu o seu nome, reerguendo-se da maior catástrofe sísmica registada na história europeia, ou na imponente paisagem vinhateira do Douro, e noutras edificações espalhadas pelo território português, na Europa e em muitos outros lugares do império resultante do esforço secular de expansão marítima.
Intelectualmente, Pombal está presente nas consequências e nos debates ainda vivamente inconclusos, decorrentes de um incansável labor reformador, exarado numa legislação abundante e diversificada, que ousou passar para a vida concreta das instituições e das pessoas e grupos sociais, afetando as mais amplas esferas da vida coletiva: nos costumes do quotidiano, na saúde e higiene públicas, nos direitos e deveres, na administração e organização do Estado, na educação, na economia e nas finanças, na justiça, na religião, na cultura e nas artes, nas ciências e nas técnicas, no urbanismo, no Exército e na Marinha, no lugar de Portugal nas relações internacionais
Ao contrário do que sucedeu com os escritos de outros grandes reformadores coevos, como é o caso de Frederico II da Prússia, cuja obra completa foi publicada menos de um século após a sua morte, no caso do secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino de D. José I nem os apologistas, nem os detratores se abalançaram à hercúlea ousadia de que este 1º volume da Obra Completa Pombalina é o testemunho inicial.
Trata-se de reunir uma obra imensa e dispersa, até hoje nem sequer plenamente inventariada
Trata-se de reunir uma obra imensa e dispersa, até hoje nem sequer plenamente inventariada. Sem ter esse vastíssimo acervo, tanto à disposição do investigador académico como do leitor culto e interessado, não será possível o estudo indispensável para alimentar um sólido juízo crítico.
O principal resultado que desta Obra se espera possa frutificar será o alargamento da compreensão da natureza, alcance e contexto da ação política pombalina.
O projeto de país que a inspirou, as condições conjunturais e as relações de força que a condicionaram, tanto nacional como internacionalmente, as ideias filosóficas que a moveram, as fontes teóricas de onde elas emanaram.
Importa também, em vez da tentativa vã de ocupar o lugar mítico de um anjo moral da história, averiguar se no agir pombalino se podem registar algumas características comuns e padrões reiterados na conduta histórica do Estado português, e nas relações deste com a sociedade civil, bem como nos processos de produção de políticas públicas.
Tendo sido diplomata em Londres e em Viena, Pombal conviveu com a plenitude desse tempo de aceleração da história europeia que é conhecido como o período das Luzes, e que geograficamente se estende também às colónias americanas das monarquias europeias.
De Portugal à Rússia, esse foi um tempo de mudança em múltiplas frentes. Expansão das cidades e das atividades industriais e mercantis. Fortalecimento da burguesia numa sociedade de Antigo Regime, ainda marcada pelos privilégios estamentais da nobreza e do clero.
Avidez crescente pelo conhecimento e pela inovação nas artes e nas técnicas, servida tanto pelo proliferar dos periódicos e dos livros, como pelo associativismo cultural, literário, levemente conspirativo das lojas maçónicas inglesas, dos clubes escoceses ou dos salões parisienses. (…)
No caso português a questão do progresso assumia porventura maior relevância, porquanto foi nesta época que confluíram ativamente os vários percursos de uma consciência de crise e decadência do país que urgia estancar, exacerbando assim o lado dramático do discurso pombalino, com base numa ideia de necessária salvação nacional, fazendo emergir a luz das trevas.
De facto, desde o século XVII que se vinha afirmando (…) uma consciência de crise e desfasamento do país relativamente às demais sociedades europeias, que atingiu o seu ápice em 1746, com a publicação do Verdadeiro Método de Estudar, de Luís António Vernei e, sobretudo, com a polémica gerada em torno da publicação desta obra. Urgia, pois, a regeneração nacional, opondo o claro ao escuro e as Luzes às trevas.
Foi Pombal o homem que se ergueu sobre essa complexa circunstância e a obrigou a corresponder à sua visão do mundo, marcando a sua presença a fogo. (…)
Sem ter esse vastíssimo acervo não será possível o estudo indispensável para alimentar um sólido juízo crítico.
O principal resultado que desta Obra se espera possa frutificar será o alargamento da compreensão da natureza, alcance e contexto da ação política pombalina
O período pombalino que assim foi codificado pela historiografia, relevando a ação política de Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras (1759) e Marquês de Pombal (1770), significou um período de enérgicas ruturas frente a correntes, a políticas, a práticas sociais, a metodologias educativas, a escolas económicas, a modos de administração burocrática e militar, tendo por espelho, modelo e meta a chamada “Europa civilizada e polida” da razão e do progresso. Carvalho e Melo, que se viria a tornar preponderante na equipa do governo deste monarca D. José I, que duraria 27 anos (1750-1777), conquistou a simpatia e a sintonia com as ideais do monarca a quem servia como secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino.
Assim, pôde levar a cabo um conjunto de reformas, com o estatuto de valido ou primeiro-ministro, que procuraram distanciar, pela afirmação inovadora, o reinado josefino do longo reinado anterior, o joanino, procurando reformar mais diversos setores do Estado e da Sociedade.
Praticamente nenhuma área vital da sociedade da metrópole portuguesa e dos seus territórios ultramarinos deixou de merecer a atenção reformista pombalina e da equipa governativa de D. José I.
O ideal iluminista de pendor utópico da renovatio temporum foi assumido politicamente pela via reformista que tudo queria tocar para transformar e superar um statu quo considerado degenerado, passadista, desatualizado, obscurantista, retrógrado.
Sabemos que o Marquês de Pombal ficou célebre, na história política de Portugal, por boas e más razões, como, aliás, foi apanágio dos grandes políticos reformistas do chamado despotismo iluminado.
Com efeito, o nome do Marquês é lembrado tanto pela ação enérgica na reconstrução iluminista de Lisboa, após o trágico terramoto de 1755, como pela expulsão dos Jesuítas, em 1759, do nosso país e das colónias; tanto pelas reformas económicas e industriais, pelas reformas sociais – tendo acabado com a discriminatória distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos –, como pelo massacre da Trafaria (1776), executado por Pina Manique, e ainda pelo esmagamento militar da rebelião da Cidade Invicta (1757) contra a criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e da primeira região demarcada com regulamento de exploração vinícola do nosso país, e do mundo.
A intensidade da produção de legislação reformista foi antecedida, acompanhada e procedida de muita produção escrita de vários géneros, muita dela do punho de Pombal, mas também um conjunto significativo por ele diretamente inspirado.
Esta imensa mole documental de fontes escritas então geradas pelo protagonismo deste poderoso político é reveladora da existência de uma vontade associada a um pensamento político, social, cultural e até religioso que queria operar uma mudança estrutural.
Os escritos do Marquês de Pombal permitem-nos observar que este estadista foi desenhando progressivamente, rodeando-se de uma equipa de qualificados conselheiros, um projeto para Portugal, em que acreditou e quis realmente implantar, enfrentando inimigos e vicissitudes várias.
Até então e em tão poucos anos, apesar de 27 anos parecerem muitos, nenhum rei e seu governo, preparou, publicou e implantou tanta legislação reformista com um afã de continuidade e sistematicidade. Há, com efeito, um Portugal antes de Pombal e depois de Pombal. E, em certa medida e em alguns aspetos, há uma Europa antes de Pombal e depois de Pombal.