1. Tenho fama, nem sempre merecida, de “Divertido e provocador”. Tudo bem. É um rótulo, no país dos rótulos, mas que aceito sem grande desgosto. Antes “Divertido e provocador” do que “sonso e sacaninha”. Não sinto que me esgote ou me defina, mas nada nos esgota ou define. Quem nos conhece e ama sabe que somos todos – todos – infinitos. O ser humano é infinito e, no seu melhor, uma caixinha de surpresas.
Entreter e incomodar – gosto da ideia. A escrita como algo que, pintando o sete, pode também incomodar, fazer uns rasgões, mexer com qualquer coisa. Acho isso importante, até porque tenho a sensação de que, em certas épocas da vida humana, chegam uns senhores, põem uma manta à nossa frente e, quando ousamos perguntar o que é aquilo, eles rosnam, com cara podre: “É a realidade, filho.”
Talvez então, nessas circunstâncias, seja bom haver escritores que digam: “Olhe que não, olhe que não…”
Vivemos uma dessas alturas em que temos uma manta à frente (uma cortina cinzenta) e nos dizem: “Ó pá, isto é a realidade. Aguenta! E se esperneias muito ainda te enfiamos a saca na cabeça, em vez de a pormos apenas à tua frente, a tapar-te a vista.”
Reparem, o argumento não é: “Estas são as nossas ideias”. São antes argumentos anti-pensamento, ou seja, não-argumentos, manhosamente apresentados como Verdade Absoluta: ele é os “Não há alternativa”, ele é os “É mesmo assim”, ele é “O que tem de ser tem muita força”, ele é “Os números são como o algodão, não enganam”. Etc.
E hoje mesmo li um artigo inquietante, ando a ler muitos nos jornais, a dizer que vem aí a 3ª guerra mundial (olha a novidade) e que uma das causas é a má distribuição do orçamento de Estado nos anos da social-democracia. Cito: “E se a Europa não se tivesse desarmado, como desarmou, para pagar o Estado Social. A Inglaterra, por exemplo, gasta em defesa menos do que 2 por cento do PIB.” É uma espécie de Lista de Schindler ao contrário: “Este centro de saúde? Podia ter dado um míssil terra-ar. Aquelas rampas para deficientes motores? Com esse dinheiro tinha-se construído mais uma fábrica de minas anti-pessoais…”
2. Todos os dias encontro frases nos outros que me comovem, inquietam ou indignam, no bom e no mau sentido destas palavras: comover, indignar, inquietar. E também que iluminam. No iluminar é que está o ganho. Dar luz, em vez de tirar luz. Clareza em tempos sombrios. E eu próprio, intermitentemente, encontrar frases, ideias que me pareçam luminosas ou, pelo menos, ajudem a iluminar algo do caminho.
Iluminar um pouco do caminho – é para isso que escrevo. É para isso que leio. E prefiro os que arriscam, os que tentam acrescentar um ponto – e por isso vão titubeantes tateando no escuro em busca de luz -, aos poltrões que, depois de encontrado o interruptor, aceleram o passo todos lampeiros e até troçam de quem arriscou/ousou ir à frente: “Caramba, o gajo parecia que ia a pisar ovos!”
Não é apenas para isso (iluminar, ser iluminado) que convivo com os outros e, quotidianamente, lá os vou amando e detestando, adorando e aturando. A vida é mais do que a sempiterna luta entre luz e sombra. Para iluminar, ora pois, está cá a escrita, com a qual lido como leitor ou autor. Mas é também isso que faço, quando tenho sorte, com as pessoas que vou encontrando: ir sendo iluminado por elas.
E ocasionalmente, sim, snif, também sombreado por outras. Há já alguns anos, o filósofo Diógenes – em tempo de números talvez seja mais fácil lembrá-lo como o nº 36, 44 é o outro – estava sentado na rua a apanhar sol quando foi abordado por Alexandre o Grande, à época o homem mais poderoso da Terra. E Alexandre disse: “Ó Diógenes, és um grande filósofo, tenho imensa admiração por ti e etc. e tal, pede-me o que quiseres e eu to darei.”
Ao que Diógenes respondeu: “Nada do que me possas dar me interessa, ó rei.” Mas, como é próprio dos Grandes insistirem, até porque não gostam de ser contrariados, Alexandre repetiu: “A sério, posso dar-te o que quiseres. Diz, que eu sou o rei, o imperador, eu tudo posso.”
Aí Diógenes (peço desculpa, o 36) lá respondeu: “Bem, grande rei, pá, com efeito há uma coisa que podes fazer por mim. É desviares-te que me estás a tapar o sol.”
3. Deixarem de nos tapar o sol. Talvez seja o que, pedido com jeitinho, pudéssemos, nestes tempos em que o perigo já nem é a austeridade mas a 3ª guerra mundial, aos Grandes do nosso mundo.
E para isso serve – a mim pelo menos serve-me muito – a literatura. Para, à falta de melhor, usar a caneta para abrir rasgõezitos na manta astuciosamente batizada de “Inevitável Realidade” com a qual, no fundo, nos querem é impedir de ver o céu, o sol e as outras estrelas. De viver sadiamente, em suma.
4. E como nem sempre tenho graça no que digo ou sou suficientemente provocador, há leitores que às vezes vêm ter comigo a resmungar: “Gostei muito daquele seu livro mas com este você desiludiu-me.” Ora essas críticas são o lado para que durmo melhor, porque as entendo sempre como elogios. Haverá escritores que iludem, eu por acaso prefiro escritores que desiludem. É o lado da literatura que mais me interessa: o da des/ilusão. Fazer rasgões na manta com que nos tentam tapar os olhos. Rasgões na cortina. E tentar dizer a verdade, sabendo que é apenas a nossa verdade, a do indivíduo que escreve e a do indivíduo que lê. Entendo a literatura, no seu melhor, como contraponto aos discursos dominantes, às narrativazinhas com que nos vendam os olhos, e nos vendem a guerra como paz, o mal como bem, o crime como serviço público, a destruição como construção, o regresso ao passado como aposta no futuro.
Ora eu gosto – orgulho-me muito – de ser um escritor que, ano após ano, desilude. E um escritor que desaponta, sim, também passo a vida a ouvir isto: “Eu até gostava de si, mas agora desapontou-me muito.” Ora bem: num tempo em que tantos apontam e dizem seguros da silva “É por ali, é por ali”, eu acho que uma das razões de ser da literatura é desapontar. Até porque apontar é feio. Ou, pior ainda, bonitinho de mais.
* Comunicação à 5ª mesa das XVI Correntes d’Escritas. O título, obviamente, homenageia um de Augusto Abelaira, “Sem tecto entre ruínas”