Tem 61 anos, é licenciada em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, lecionou Português, Literatura Portuguesa e Latim durante 36, e faz suas as palavras de Vergílio Ferreira, a quem dedicou o premiado livro acima referido: “Ser professor é colaborar mais eficazmente com o futuro”. Ao longo do tempo, o que deu sentido à sua profissão foi sentir que “o empenhamento de um professor tem forçosamente repercussões no futuro das crianças e dos jovens”.
Nascida em 1948 em Ovar, MAS começou a dar aulas em 1971, no então Liceu Nacional de Almada. Ao fim de um ano foi transferida para o da Amadora, onde viveu o 25 de Abril e o PREC. No entanto, foi na Escola Secundária José Gomes Ferreira, em Benfica, que passou a maior parte da sua carreira. Um percurso marcado, como o dos seus colegas, por numerosas reformas e alterações de Programas. “Testemunhei, impotente, a ‘morte’ do ensino do Latim e a saída, dos Programas de Português, de autores e obras essenciais à formação cultural de qualquer um”, desabafa. Mas apesar das pedras no caminho, continuou, até porque “neste vendaval de mudanças, houve coisas que nunca se alteraram, como a curiosidade das crianças e dos jovens e a minha vontade de os ensinar”.
Uma vontade que chegou com o seu primeiro dia de aulas na Escola Primária e nunca mais partiu. Pelo contrário, cresceu e transbordou da experiência escolar para a escrita.Há três anos aposentada, MAS conta com mais de uma dezena de títulos publicados (ver caixa), desde manuais escolares a ensaios literários. Todavia, sublinha que tanto os manuais quanto os livros de teor ensaístico são “estratégias de apoio” e não resolvem os problemas da educação, assim como “a gravidade das questões do nosso ensino escolar não se coloca nesta sarabanda de medidas e contra medidas de ordem pragmática” tomadas pelo Ministério da Educação.
Para MAS, a reflexão sobre o funcionamento da Escola deve incidir, essencialmente, “na formação do professor e na conceção que se tem do que seja um professor”, pedra de toque da Educação. A questão da ausência de interesse, respeito ou disciplina por parte do aluno, são já, do seu ponto de vista, consequências da insuficiente formação intelectual dos professores, que se assumem cada vez mais como “um meio, um recurso”, e não como “uma fonte, uma autoridade que não se obtém por decreto, mas através do saber e de como o aplicam na relação professor/aluno”.
Maria Almira Soares evoca o professor Vergílio Ferreira como exemplo dessa autoridade cognitiva, através do testemunho de um ex-aluno (disponível no Espólio de escrita de VF): “Todas as aulas eram iguais para mim. Dava-se o programa, ou não se dava, tinha que se empinar uma série de livros, tinha de se estar com atenção senão estava tudo lixado, era um calvário. (…) Mas com o Vergílio Ferreira era diferente. (…) Foram aulas que eu não esqueci. Aulas que prendiam a atenção e em que, portanto, não era preciso estar com atenção”.
Pós-graduada em Educação e Leitura pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, MAS, que em 2004 fora já distinguida com a menção honrosa do mesmo Prémio Vergílio Ferreira (com o ensaio As Heteroleituras de Fernando Pessoa), desenvolveu, paralelamente à carreira docente, ações de sensibilização para a importância da leitura em várias escolas e bibliotecas, e publicou, em 2003, Como Motivar Para a Leitura?. Também autora de uma coleção conotada com o apoio à leitura escolar (Para uma Leitura da Mensagem, Para uma Leitura de Folhas Caídas, entre outros), rejeita o resumo do texto literário, propondo apenas linhas de interpretação e questões sobre as obras. Afinal, a leitura “chama, de forma muito íntima, a nossa subjetividade” e mesmo no contexto da Escola, “tem de ser um ato íntimo e pessoal da relação com o livro”.
Por outro lado, defende que “a criação de um leitor não decorre tanto do ‘impingir’ livros, mas do desenvolver de um certo imaginário, de uma certa necessidade que, depois, encontra correspondência e alimento na leitura”. Aqui reside a importância do professor enquanto “detentor de um imaginário rico de leitor” que, quando partilhado com o aluno, tem a capacidade de criar “ressonância, memória, influência” e provocar o “desejo de imitar ou, pelo menos, de citar”.
Por acreditar na leitura partilhada, em diálogo, como “forma suprema de conhecimento”, a professora coordena a tertúlia literária LERDOCELER, na oficina de chocolate Denegro, em Lisboa, onde todos os meses propõe um livro, lançando questões e pistas de leitura. O debate é exigente e eclético, com sugestões que vão do ensaio ao romance, passando pela poesia, biografia e até libretos de ópera.
“Sempre senti prazer a ensinar, em saber que o outro estava a descobrir coisas novas através das minhas palavras”, afirma. Um prazer que tem encontrado eco na escrita de histórias para crianças. A Revolta das Frases, vencedor do Prémio de Revelação da APE – Literatura para a Infância e a Juventude, em 2003, mas só publicado em 2009, é o seu primeiro livro infantil, sobre a força comunicativa das palavras, onde uma frase regressa do mundo das palavras já ditas e, aliada à imaginação de um menino chamado João, põe uma escola em alvoroço. Está agora a escrever uma série de aventuras de um “detetive das palavras”. Em retrospetiva, reconhece que “uma das coisas boas de se ser professor é a de conhecer estes Joões que vivem a Escola como lugar onde, enquanto se aprende, se vai soltando a imaginação, se deixa voar a curiosidade, se experimenta o poder da fantasia e do espanto”.
O ‘mestre’ Vergílio Ferreira
Perante Vergílio Ferreira, Maria Almira Soares considera-se sobretudo uma leitora: “O que escreveu interpela-me como se, nas suas palavras, morassem mistérios a decifrar”, diz. A forma como VF se representou, nos diários, na ficção e em documentos do seu Espólio (à guarda da Biblioteca Nacional), enquanto “lugar de coabitação entre um criador literário e um professor de liceu” é, para si, um desses ‘mistérios’. “A vontade de estudar o sentido profundo dessas representações” levou-a a escrever o livro que lhe valeu aquele prémio, da Câmara de Gouveia, terra natal do romancista. Com esse ensaio, procurou compreender a “identidade docente” de VF e como nele conviviam o escritor e o professor – o mesmo é dizer o domínio da arte e o da escola na vida de um dos maiores nomes da literatura portuguesa.
Para a autora, era através da dimensão cultural que VF se reconhecia enquanto professor, quando “à margem das obrigações dos programas e do formalismo das aulas, desviava para a partilha de leituras e conhecimentos de ordem cultural com os alunos”. Importava, essencialmente, captar a curiosidade dos estudantes, pois, mesmo que não compreendessem completamente o que estava a ser dito, ficavam cativados por aquele saber. Por aqui se explica o título do seu ensaio: “Vergílio Ferreira assume a arte como transcendência e consciencializa a docência como perda, mas a arte transborda para a aula e faz com que a docência se una à totalidade do homem, escritor e professor que foi”, afirma.
Ao longo do livro, Maria Almira Soares define como “singular” a identidade docente do autor de Para Sempre, que se caracteriza pela “paixão da cultura e ‘religião’ da arte” e “honestidade e integridade intelectuais” de alguém que recusa ser “um vil moinho de ensinar” (como escreveu em Cântico Final), transcendendo a natureza ‘programática’ e rotineira da Escola. O ensaio põe, assim, a tónica no professor VF, vertente pouco explorada, pretendendo contribuir para o conhecimento da totalidade vergiliana.
Por outro lado, O Excesso da Arte num Professor por Defeito pode ser ponto de partida para uma reflexão sobre a Escola e o seu triângulo fundamental: professor, aluno e educação. “Neste meu ensaio estão implicadas, mais implícitas ou mais explícitas, linhas de análise de vários temas de índole escolar”, refere a autora. De entre as quais destaca a migração do professor “do lugar de mestre para o de agente educativo entre outros agentes educativos”, as medidas de natureza pragmática e economicista que “fazem esquecer que a educação não pertence à dimensão administrativa mas humana”, a Escola que “prefere não produzir atrito nem estranheza e reivindica a realização cabal e feliz da criança” e “a educação escolar que se concebe como se ela própria fosse o fim para o qual trabalha”.
Apresentando Vergílio Ferreira como exemplo do que deve ser um professor, “modelo de transcendência cultural que procura a aliança com o aluno”, Maria Almira Soares apela à reflexão sobre o verdadeiro sentido do ensino escolar. Para si, valem as já citadas palavras do ‘mestre’: “Ser professor é colaborar mais eficazmente com o futuro”.