Sendo uma bola de pó feita de restos humanos, não deixa de ser irónico que o que varremos é a nossa própria morte, a morte que nos vai acontecendo todos os dias, que se deposita nos livros, nos móveis, debaixo da cama, no soalho, pois é, como escreveu Yuri Al’Hanati, em A volta ao quarto em 180 dias, “um amontoado de pedaços de pele, caspa, pelos que caíram do corpo, poeira dos móveis e das paredes e chumaços de tecido”, que se agrupa seguindo as mesmas leis das galáxias ou das moléculas.
A questão é que essa bola se forma porque somos um processo e não um fim, ou melhor, a vida é um adiar do fim, e um dos processos de procrastinar é mudar de pele. Não somos um objeto estático, mas um caminho, por isso deixamos cair coisas, como a pele – como a serpente de Nietzsche, que morre se não a mudar, ou como as ideias e as almas, que definham até ao apagamento se recusarem qualquer alteração. A bola de pó é o corpo a mudar de opinião, a transformar-se, a caminhar. A morte mais terrível seria mantermo-nos iguais, na mesmice mineral, por isso uma possível definição de vida poderá ser esta: a vida é um deixar de ser para continuar a ser.
Existem então dois tipos de morte: a da estabilidade absoluta e a da dissolução. A primeira é essa mesmice mineral e a segunda é o preço a pagar por um processo que culmina numa transformação mais radical, em que o pó retorna ao pó, e a alma se distribui pelos objetos do seu amor, coisas camonianas, seres vivos e pessoas, especialmente familiares e amigos, mas também inimigos, porque a alma entrega igualmente a sua essência ao ódio, uma vez que este é uma forma avessa de amar. Também sobrevivemos naquilo que odiamos.
Ouvi num documentário que não damos nada à terra, que tiramos, tiramos, tiramos, e não damos. Enfim, somos muitos, e para contrariar isso, de que tiramos, e somente tiramos, somos todos terra e no final havemos de lhe entregar todo o barro que nos foi emprestado. Como cantou Adriano Correia de Oliveira: “Eu sou devedor à terra,/ a terra me está devendo,/ a terra paga-me em vida,/ eu pago à terra morrendo”. Um pedaço de barro ergue-se, sustido pela terra, para depois voltar a ser barro, sustendo a terra, mas ao erguer-se, ou quando se ergueu, produziu algo único: relações, afetos, leituras, foi às compras, foi à ópera.
A vida produz, da matéria-prima mais rude – o barro –, versos, cantigas, ódio, abraços, medos, certezas, enfim, algo que viaja de barro em barro, resistente à vulgaridade da ameaça física: não se pode esfaquear uma canção, não se pode atirar pedras a uma ideia (metaforicamente, sim, mas denotativamente não). A única maneira de matar a arte ou qualquer produção imaterial é disparando esquecimento, sendo essa também a única forma de uma alma morrer, tão diferente da outra, a do corpo que se transforma em pó. E é importante lembrar o epitáfio de Mário Quintana, que é um manual de filosofia escrito numa frase e que deveria estar presente em todas as tumbas: “Eu não estou aqui”.
Esta ideia, “eu não estou aqui”, mostra bem essa transição e a certeza de que o corpo é o resto de algo, um pó que se varre para que a alma, já transformada nas coisas amadas, subsista inefável, como uma canção que se vai trauteando, até ser esquecida – porque o esquecimento é o pó da alma. A origem das espécies é uma teoria incompleta, que se finda na biologia, que não contempla uma outra evolução, a da imaterialidade. E aqui não me refiro a uma abordagem mística, mas à evolução da informação e como ela resiste à morte do seu veículo, pois a informação é interoperável: um poema vive tanto na voz, como escrito num papel, ou em zeros e uns.
O barro, a matéria que sustém um poema (ou qualquer tipo de informação) é irrelevante. Pode ser silicone, plástico, voz, papel e tinta. Quando silenciamos uma pessoa, quando rasgamos uma letra de uma canção, podemos imediatamente aplicar a fórmula de Quintana ao olhar para a mudez ou para os pedaços de papel: a canção não está ali, continua algures, noutra voz. Num sentido absoluto, a morte não é morrer, é esquecer a canção. E a eternidade é continuar a cantar, ainda que o pó pareça ser o grande vencedor: “O homem é o lobo do homem, e pede desculpas pela poeira. Não sabe que um dia, quando não houver mais homens, a poeira reinará sobre o sistema solar e não se ouvirá ninguém pedir desculpas por nada. A poeira nos sobreviverá” (Yuri Al’Hanati).
Entretanto, e antes de o pó se impor derradeiramente, talvez faça sentido varrer, não o pó, mas aquilo que a morte não pode silenciar, tal como se lê nos versos de Minês Castanheira: “No poema ficou o mais secreto./ Como se eu varresse para dentro de mim/ silenciosamente/ todas as coisas da casa”