“… nós mais não somos do que um desenho que se move na escuridão…”
Os Memoráveis, de Lídia Jorge, prestes a sair, indubitavelmente um dos seus melhores romances, prossegue a rememoração da história recente de Portugal encetada pela autora desde o já longínquo O Dia dos Prodígios (1980). Nesta cartografia da memória e da identidade históricas portuguesas, Lídia Jorge procede em Os Memoráveis como procedera nos seus mais representativos romances: a criação de um novo horizonte de sentido para a história, de uma reinterpretação dos acontecimentos, de modo a, captando um seu diferente veio unitário subterrâneo, desdobrado numa multiplicidade de focalizações literárias, estabelecer uma nova narrativa reveladora da dimensão libertadora, opressiva ou decadente da história. Num texto publicado em Para um Leitor Ignorado. Ensaio sobre a Ficção de Lídia Jorge (org. Ana Paula Ferreira, 2009), a autora dá conta da sua oficina de escrita: 1º, o nascimento de uma imagem na sua consciência; 2º, o aparecimento de rostos, de vozes; 3º, a emergência de movimentos, de contendas, de tensões, desencadeando o processo dinâmico de várias vontades em disputa por algo. Vista deste modo, eis – em brevíssima síntese – a estrutura de Os Memoráveis: uma foto de Agosto de 1975 cristaliza o tempo português entre a revolução de 1974 e a primeira década do século XXI, eixo central da diegese; dessa fotografia emergem os rostos e as vozes dos protagonistas da revolução e, involuntariamente, do seu fracasso, nomeados por alcunhas por um dos retratados na fotografia (Rosie Honoré Machado, belga, casada com o jornalista português António Machado, pais de Miss Machado, jornalista da CBS, que no tempo presente investiga a emergência do movimento militar do 25 de Abril de 1974 para um episódio de uma série televisiva intitulada “A História Acordada”, ideia do embaixador americano em Portugal em 1974/75); a partir das posições de cada um dos elementos da fotografia captada no restaurante “Memories” (El Campeador, o Bronze, Charlie 8, o Umbela, A. Machado, Rosie Honoré, o cozinheiro Nunes, o Salamida, benzendo a terrina postada no centro da mesa, três militares barbudos, o casal de poetas Ingrid e Francisco Pontais e o próprio fotógrafo, Tião Dolores), desencadeia-se a investigação da equipa da CBS (Ana Machado, a jornalista Margarida Lota e o operador de som e imagem Miguel Ângelo), refazendo uma nova narrativa histórica sobre o 25 de Abril, intentando libertá-lo das camadas conflituais que sobre ele se depositaram desde 26 de Abril até ao final do século, gerando interpretações deformadoras daquele dia historicamente auroral, dia em que o “anjo da alegria” (p. 24), gerando uma “pausa na incessante selvajaria humana”, provocou o momento em que a História de Portugal sofreu um rasgão no tempo convocando os deuses da beleza, do bem, da virtude desinteressada e da felicidade. Porém, no fim desse mesmo dia, aquando do encontro entre os capitães de Abril e o general Spínola, a dissensão, a “contenda” (que a autora busca para desencadear a ação diegética) e a maldade inata humana, começam a trabalhar para que o dia gratificado entre todos se metamorfoseie num horizonte de desgraça e decadência.Nenhum romance português reconstruiu o dia 25 de Abril de 1974 como este, rememorando a sua inocência, a sua pureza e, também, alguma ingenuidade. Por isso, o romance inicia-se com um curto capítulo intitulado “A fábula” e prossegue com o desvendamento desta (a reconstrução histórica), “Viagem ao coração da fábula”, desconstruindo os clichés apresentados no primeiro capítulo por Frank Carlucci por via da reconstrução narrativa, em cerca de três centenas de páginas, da vitória da malícia, da inveja, do ressentimento dos “anfíbios” (os “vira-casacas” da I República), aqueles que “tinham sido concebidos e educados (…) para viverem em ambos os lados [políticos] e em todos os regimes” (p. 249). São estes que ora humilham “El Campeador” na Praia Grande; fazem desaparecer o registo fotográfico de Tião Dolores; castigam com serviços militares inqualificáveis Charlie 8; culpabilizam os antigos militares “barbudos”, um ora professor de Biologia e ecologista, outro mecânico de automóveis; caluniam nos jornais a probidade de Umbela, obrigado a defender-se em tribunal; remetem para as pequenas causas nobres sem retorno financeiro o antigo locutor Salamida, posteriormente advogado, que desencadeou o golpe militar pondo no ar a canção “Grândola” na Rádio Renascença; e sobretudo, sobretudo, desqualificam as intervenções jornalísticas de António Machado, despedido pelo novo diretor do jornal.Figuras inocentes e por isso trágicas na roda da história, que mais recorda o mal (a guerra, o sangue, os vencedores finais, que apagam do registo historiográfico os vencidos) do que o bem, todos os retratados do “Memories” “estavam a pagar” (p. 290) – conclui a repórter da CBS – o ato epopeico e libertador (porque desinteressado e inocente) do 25 de Abril. O momento final da decadência dos sonhos do 25 de Abril é dado, individualmente, pelo isolamento trágico de António Machado, trancado dentro do quarto, sem dinheiro para pagar as contas da luz, do telefone e da água.Lírico (tentativa da reconstituição de um dia virginal) e trágico (revelação do povo como o sacrificado do altar da História: o “anho” encravado na terrina do centro da mesa, abençoado por Salamida, que, segundo o casal de poetas Pontal, áugures da História, prenunciou fatalisticamente o fim sinistro da Revolução), o romance Os Memoráveis ostenta uma das mais belas e dúcteis aplicações da língua portuguesa atual, de vínculo moderno, cosmopolita (sem pudor de nela integrar frases em francês e inglês), postando-a literariamente num meio-termo entre o coloquialismo brejeiro habitual na maioria dos romances portugueses de hoje e o eruditismo académico. O primeiro capítulo atinge um tal paradoxo de beleza estética que atrai e assusta simultaneamente o leitor, já que se, por um lado, as 40 primeiras páginas estatuem a língua portuguesa a um nível excessivamente alto para serem dadas como exemplo de imitação, cria no leitor, por outro lado, a consciência do gozo estético propiciado pela flexibilidade sintática e morfológica (o jogo das proposições e das conjunções e o jogo dos tempos verbais) e pela elasticidade semântica que atravessam todo o capítulo.Romance de leitura absolutamente imprescindível para quem viveu o 25 de Abril, para quem queira interrogar hoje a história recente de Portugal, descobrindo-lhe um sentido superior ao dos slogans proferidos no Parlamento nos dias comemorativos, e para quem ame deixar-se impregnar esteticamente pelo doce “sabor” da língua portuguesa – tripla constelação da leitura de Os Memoráveis.