Há dois grandes nomes na improvável cinematografia palestiniana contemporânea: Elia Suleiman, mais conhecido do grande público, e Kamal Ajafari.
Enquanto Suleiman realiza ficções, a meio caminho da comédia, em que revela uma certa perplexidade perante o mundo; Ajafari faz documentários de autor, um cinema de guerrilha, em que muitas vezes se socorre de imagens de arquivo.
Como todos os realizadores palestinianos, deparam-se com a dificuldade de não existir um estado com sistema de financiamento próprio, pelo que a montagem de orçamento está sempre dependente de fundos externos.
Kamal Ajafari é realizador e artista visual. Nasceu há 52 anos, em Ramle, na Palestina, mas emigrou para Berlim, onde atualmente vive. Fez mais de uma dezena de filmes, entre curtas e longas, que viajaram pelo mundo inteiro, sobretudo no circuito de festivais.
Um dos objetivos morais do seu cinema é o de manter viva a memória e as histórias do povo palestiniano. Na sua última longa, A Fidai Film, reporta-se ao saqueamento do arquivo de imagens palestiniano pelo exército israelita durante a invasão do Líbano, em 1982. O IndieLisboa vai fazer uma retrospetiva da sua obra.
Nas atuais circunstância, com a guerra em Gaza e o posicionamento de alguns países ocidentais, como a Alemanha, torna-se mais difícil fazer o seu cinema?
Sempre foi um grande desafio encontrar fundos para os meus projetos. Está tudo relacionado com o facto de que não é permitido que os palestinianos narrem as suas próprias histórias, mostrem a sua perspetiva. Mas desde o início da guerra, tornou-se mais difícil em alguns lugares, como na Alemanha, onde eu vivo.
Ao mesmo tempo, tornou-se mais urgente contar essas histórias?
Sem dúvida. Há muitos sítios em que aumentou o interesse e se dá maior visibilidade a trabalhos ligados à Palestina. Acontece que a maioria dos festivais de cinema e das instituições culturais na Europa são financiados pelo estado. Em alguns lugares, há mais controlo estatal do que em outros.
Na Alemanha, há um grande controlo sobre obras que estejam ligadas à Palestina. Mas, ainda assim, sinto que o meu trabalho ganhou outra dimensão e maior visibilidade desde o início da guerra.
A arte pode mudar alguma coisa?
É algo que me tenho perguntado a mim próprio. O meu cinema tem sido sempre algo pessoal, uma forma de expressar os meus sentimentos, ligando-os ao sítio de onde eu venho. Só que há uma grande máquina que trabalha contra tudo isto. Os meus filmes passam em festivais, o que é muito importante. Mas quando se fala de media, da grande visibilidade, o nosso trabalho é sempre diminuído ou esquecido.
Quero ter a esperança de que é possível mudar alguma coisa e que isto está a mexer com a consciência das pessoas. Eu acho que o cinema e as artes podem alterar as pessoas e mobilizá-los. É isso que tento fazer, mas sei que há um bloqueio dos grandes meios de comunicação social.
Sente-se frustrado?
Não sei se sinto frustração, mas sou realista, tenho a consciência de que podemos alcançar apenas um pequeno grupo de pessoas. Mas, ao mesmo tempo, acredito no poder do cinema e da arte. Quando eu parar de acreditar nesse poder, deixarei de fazer filmes.
E sinto satisfação e alívio quando vejo que o meu trabalho consegue comunicar com outras pessoas numa dimensão humano. Mas depois, sempre que abro a televisão, vejo que os media estão contra a minha luta e apoiam a violência e o colonialismo que acontece na Palestina.
É uma missão?
Não lhe chamaria assim. É algo que não posso controlar, porque para mim é uma questão existencial fazer estes filmes. Eles são parte de mim.
Como encontra o equilíbrio entre a realidade que quer retratar, de forma credível, e o trabalho artístico que lhe quer acrescentar?
Lido sempre com essa questão. Como encontrar o equilíbrio entre mostrar aquilo que quero e encontrar a minha expressão artística. Preciso ouvir a minha voz interior e chegar ao ponto em que o trabalho está a comunicar a um nível humano e universal. Como trabalho muito com a montagem o processo torna-se longo.
Porque trabalha tanto com arquivos?
Tenho trabalhado com arquivos, sobretudo porque perdemos tudo, inclusive as imagens de nós próprios. O que tenho tentado fazer é escolher imagens feitas pelos invasores e virá-las contra eles próprios, dando-lhe o significado que lhes quero atribuir. É por isso que chamei a um dos meus últimos filmes Camera of the Dispossessed [Câmara dos Despojados]. É algo que o cinema pode fazer muito bem através da montagem.
E o acesso essas imagens?
Tem sido sempre um grande desafio. Mas agora está mais facilitado porque é possível encontrar muitas coisas online. O meu ângulo é a inacessibilidade. Por isso é que faço o trabalho sobre arquivos. Mas as imagens que foram roubadas de Beirute e de outras instituições palestinianas, desde 1948, estão escondidas em arquivos israelitas, a que ninguém tem acesso. Às vezes investigadores israelitas tem permissão para ver estas imagens, mas não os palestinianos. Por isso, trabalho com tudo aquilo que descubro, online ou nas mãos de privados.
Isso faz uma ligação ao seu último filme, A Fidai…
É sobre os arquivos palestinianos que foram roubados em Beirute, durante a invasão de 1982. O exército israelita entrou em bibliotecas e outras instituições palestinas em Beirute e fez desaparecer os seus arquivos, de livros, mapas, filmes, fotografias, documentos privados.
Era o maior arquivo palestiniano desde a ocupação de 1948. Foi todo saqueado e transportado para os arquivos israelitas, que os mantêm escondidos até agora.
O filme começa com esta ideia e uso alguns dos materiais roubados e outros que descobri em arquivos israelitas que estou a dar-lhes um novo contexto. É uma tentativa de reclamar a devolução destas imagens e criar um novo arquivo, às vezes sabotando, outras reconstruindo.
Qual é o atual estado do cinema palestiniano?
Há pessoas a trabalhar por todo o lado. Uma vez que não temos país nem financiamento próprio, o desafio é encontrar apoio fora da Palestina.
Tem alguma esperança em que o conflito se resolva?
O que se tornou evidente é que a questão da Palestina está relacionada com o estado geral do mundo. A forma como, por exemplo, a polícia americana está a lidar com as manifestações estudantis, mostra que a Palestina é uma questão global. A luta da Palestina é, na verdade, uma luta da humanidade, porque tudo está relacionado.
Sendo assim, tenho a esperança que um dia o mundo comece a questionar-se e olhe para as injustiças que existem na Palestina, mas também nas suas próprias sociedades.