“Sim sim, vai no Batalha”, a expressão popularizou-se no Porto como resposta a uma história algo insólita ou pelo menos difícil de acreditar. Isto porque as coisas inacreditáveis só acontecem no cinema. E, no Porto, o cinema, antes de todos os outros, era o Batalha. A expressão “Vai no Batalha!” continua a ser usada mesmo quando, durante décadas, a emblemática sala de cinema se tornou um edifício devoluto, numa das principais praças da cidade. Tal como aconteceu, e acontece, pelo país e pelo mundo fora, nos anos 90 a sala clássica não resistiu aos multiplex dos centros comerciais (e mesmo estas têm agora que lidar com a concorrência desigual do streaming).
Contudo, em contracorrente, em dezembro passado, o Batalha voltou a abrir as portas ao público. E o público acarinhou o novo velho espaço, fazendo do projeto um verdadeiro sucesso cultural e o sinal de esperança para o cinema, em tempos que as pessoas raramente resistem a sair do conforto do sofá. O Batalha não renasceu como um simples cinema, nem como uma iniciativa privada lucrativa. O Batalha é hoje um centro de cinema e uma aposta ganha da autarquia. De certa forma é a cinemateca, ou pólo que o Porto nunca chegou a querer. Isto embora, o diretor artístico, Guilherme Blanc, concorde apenas em parte com a ideia: “Temos uma preocupação com a história do cinema, com preocupações contextualizadoras que não são as mais habituais em cinematecas, revisitamos a história em ângulos específicos e amplos. Mas também há um grande interesse e preocupação com o cinema contemporâneo”. Além disso o Batalha não possui um espólio de cópias de filmes, pelo que se torna dependente da disponibilidade do mercado.
Facto é que, depois de décadas fechado, o Batalha voltou à vida e tornou-se um dos mais interessantes e concorridos pólos culturais da cidade e do país, com um papel que vai além da projeção de filmes, fazendo um eixo cultural com o Teatro São João, na mesma praça, e o Rivoli, com uma preocupação mais próxima das artes performativas.
Quando se diz que o Batalha não é apenas um cinema, é mesmo porque a sua atividade extravasa mesmo a exibição comercial de filmes. Em primeiro lugar, tem uma programação cuidada e adequada a diferentes públicos, incluindo sessões especiais para escolas e uma forte articulação com a academia. Depois porque vai muito além da exibição. O Batalha é também um centro expositivo, uma biblioteca apenas de cinema, um espaço de debates, um lugar para as artes performativas, uma editora e uma produtora de cinema. Tudo isto está em expansão. O novo Batalha começou em grande, mas ainda tem muito por onde crescer.
Foi no Batalha que, no passado dia 17, decorreu a sessão abertura do Porto/Post/Doc., festival prestes a atingir uma década de existência, que se antecipou ao ‘renascimento’ do cinema na cidade – quando começou ainda não reabrira o Trindade nem o Passos Manuel, pelo que decorria essencialmente no Rivoli. Para o diretor do festival, Dario Oliveira, “A Batalha é o sítio onde sempre quisemos estar”. E é um local onde esteve, em grande estilo, com as melhores condições.
Na sessão de abertura passou precisamente o filme Vai no Batalha! Vai no Batalha!, documentário de Pedro Lino sobre aquele Cinema, em que se conta a sua história e muitas histórias, com recurso a depoimentos, sobretudo de Margarida Neves, neta do fundador Luís Neves Real., e o arqº Alexandre Alves Costa, que juntamente com Sérgio Fernandez foi responsável pela reabilitação do edifício, originalmente concebido por Artur Andrade, em 1947 .
Um dos mais divertidos episódios que ali se relata fala de uma figura típica do Porto. O fulano foi ver o Cleópatra e contou quantos degraus é que Elizabeth Taylor subia escadaria e, subitamente, virava-se e olhava fixamente para a câmara, como se fitasse diretamente os espectadores. Nas sessões seguintes, no momento exato, gritava: “Oh Cleópatra!” E a rainha virava-se para os espectadores como se estivesse a reagir à chamada.
É das pequenas histórias que se faz a grande história do cinema. E o Batalha não só foi um grande cinema do Porto, como foi dos mais antigos do país. Obra obstinada de Luis Neves Real (um dos dirigentes do pioneiro Cine-Clube do Porto, presidido por Henrique Alves Costa, que foi colaborador do JL), que se tornou um negócio de família. E de certa forma também um espaço de resistência ao regime. Conta-se que quando foi feita a obra de remodelação, nos anos 30, os inspetores implicaram com as iniciais C e B dos puxadores das portas, pois, em vez de “Cinema Batalha”, interpretaram como “Comité Bolchevique”.
As obras do Batalha foram feitas com bom gosto arquitetónico, arrojado para a época, e um cuidado nos pormenores. Foram chamados vários artistas. Um deles, Júlio Pomar, era ainda um jovem a acabar a formação. Foi desafiado a pintar um mural. Pomar já era na altura contestatário do regime e, a meio do serviço, foi preso, deixando o mural inacabado. Os responsáveis tiveram a dignidade de esperar que o pintor saísse da prisão para terminar a obra. Contudo, não foi a única peripécia. Era o período neorrealista de Pomar, e entre as figuras representadas no longo mural estava uma ceifeira. O suficiente para a inspeção censurar o quadro ou, mais concretamente, censurar a foice, interpretando-a como um símbolo do comunismo.
Esta não foi a única amputação que o mural sofreu. Quando o Batalha se reergueu foi com grande emoção que se descobriu que a pintura ainda era recuperável. E terá sido o próprio pintor que manifestou o desejo de no seu restauro da pintura colocar a foice em grande evidência.
Esta não foi a única transformação do Novo Batalha. Durante anos, em baixo funcionou a sala bebé, criada nos anos 60, mais dedicada ao cinema de autor. Não fazia parte do projeto original, ali costumava funcionar um salão de chá. O novo projeto recupera o bar, mas dividiu a sala principal em duas. Na parte de cima fica agora a sala 2 que, segundo Guilherme Blanc, tem melhores condições acústicas do que a sala bebé. Todavia, as duas salas nunca são usadas em simultâneo.
Uma das mais ousadas iniciativas do Batalha foi uma maratona de cinema, à moda do que alguns espaços faziam noutros tempos, como os cinemas Quarteto, em Lisboa. Pela noite dentro, até de manhã passaram ininterruptamente filmes. Tinham comum ser extraídos de um livro que revelava as películas que várias personalidades viram antes de morrer. Inscreveram-se 130, quase todos jovens e resistiram quase todos. Blanc comenta: “Estávamos preparados para que fosse um grande forrobodó, com pessoas em festa, a comer e a dormir na sala, mas depois ficámos perplexos, pois o público permaneceu sentando e atento aos filmes o tempo inteiro”.
Esta iniciativa mostra a abrangência de públicos. Não atrai apenas os cinéfilos mais velhos, mas contribui para formar uma nova geração, negando a ideia simplista que os jovens estão tão ligados e alienados com o streaming, os videojogos e o telemóvel que não lhes interessa ir às salas. Outro exemplo de sucesso perante um público mais novo foi o ciclo integral de David Cronenberg. Houve uma imensa adesão, sendo que em alguns casos tivemos que passar as sessões para a sala principal
Cronenberg é um interessante caso de transversalidade: tanto interessa a um público mais velho, como tem a capacidade de captar novas gerações. Contudo, nem sempre é assim. E Guilherme revela que existe sempre a intenção de criar equilíbrios, para chegar a diferentes públicos.
E mesmo que o público não vá ao Batalha, o Batalha tenta ir ter com o Público. Durante o verão fizeram-se sessões ao ar livre. E há um programa feito em conjunto com a comunidade de imigrantes bengali que há muito vive nas redondezas.
Já se disse, o Batalha não é só filmes. Uma vitrina permite uma breve exposição. Atualmente está patente uma exposição dupla, com trabalhos da realizadora e artista plástica portuguesa Salomé Lamas, e o realizador brasileiro, que representou o seu país na Bienal de Veneza, Jonathas Andrade.
No primeiro andar, a biblioteca dedicada a livros de cinema, com um espólio crescente, disponível para investigadores e outros interessados. À entrada a livraria, com outros livros, incluídos as duas primeiras publicações do Batalha: um livro sobre o próprio cinema e outro sobre a obra de André Gil Mata. Mensalmente há espetáculos de artes performativas. E, na sala filme, uma blackbox onde passa sempre uma obra em loop, à disposição de quem por lá passar. Também há cursos de cinema, quase sempre esgotados, e grupos de leitura e cinefilia. Além disso, o Batalha dedica-se à produção cinematográfica. O primeiro filme apoiado foi 2720, de Basil da Cunha, que teve uma apresentação com música ao vivo. Vai estrear Os Amigos do Gaspar: Uma Reunião na Cidade, de Duarte Coimbra; e já foi encomendada uma obra a Jonathas Andrade.
De momento corre um ciclo dedicado ao Clubbing e, para o início do próximo ano, estão previstos ciclos temáticos à volta de Jane Birkin e do realizador malaio Tsai Ming-liang. Guilherme Blanc não esconde o entusiasmo no balaço do primeiro ano. E diz: “Este é apenas o início da vida de uma instituição para a qual se pretende grande longevidade”