João Botelho nunca tinha feito um filme do género fantástico, propício à colocação das grandes questões: o que é a realidade?, o que é a arte? E, além de tratar esse género pela primeira vez, confronta-se com dois dos nomes fundamentais da literatura portuguesa, José Saramago e Fernando Pessoa, numa simbiose inesperada. O resultado é um filme que guarda desde o primeiro plano um enigma persistente, nos confins do que pensamos e nas raízes do que somos.
O romance de Saramago adota uma posição crítica sobre a heteronímia e defende uma certa leitura da poesia de Ricardo Reis, tudo em pleno desenvolvimento das suas temáticas próprias. Este filme, que é a sua adaptação, mantém esses pressupostos interpretativos e confere-lhe uma ressonância própria da sua tradução em imagens. Fica, desde logo, a constituir o terceiro vértice de um processo em torno do mistério de Pessoa: o mistério da sua despersonalização, do seu desdobramento, da sua metamorfose em vários poetas. Que não é, não pretende ser resolvido, mas pode ser enunciado.
Na verdade, quando vulgarmente dizemos que Pessoa criou os heterónimos, pressupomos que ele é o seu autor consciente e ativo, por muito que seja complexa cada uma dessas figuras criadas, por muito que elas aparentem ter uma existência própria. Mas a leitura de Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis vai mais longe, porque é a leitura de um escritor que com Pessoa se mede, e que de Pessoa completamente se apropria. E essa leitura é a de que entre autor e heterónimos há uma singular e perfeita multiplicidade: Ricardo Reis, como os outros, é o duplo de Pessoa.
Encontramos a base teórica de tal leitura num artigo de Saramago do mesmo ano de 1985, “As Máscaras que se Olham”, publicado aqui no JL mas que só dez anos mais tarde viria a sair na sua forma completa, num livro de homenagem a Cleonice Berardinelli: “Posta a questão nestes termos, seria fascinante ler Ricardo Reis como Ricardo Reis, e não como Fernando Pessoa (…), aceitando à letra aquilo que teria sido a verificação final de Fernando Pessoa: eu não sou eles.” Quer dizer, “seria fascinante” cortar em definitivo o cordão umbilical que une autor e heterónimos. Deixa então de haver uma entidade que se defina como “um heterónimo de Pessoa”, que passa a ser um duplo de Pessoa em corpo inteiro, ímpar, que se autonomiza e transforma o autor em ex-autor.
Por sua vez, é uma personagem muito especial este Pessoa a quem, nesta ficção, se retira o papel de autor. Por exemplo, conhece perfeitamente os poemas que Ricardo Reis escreve, apesar de tudo. O ponto decisivo é que, no mundo deste filme, não há diferença ontológica entre Pessoa e Reis, e, se a morte verdadeira de Pessoa é notícia de um jornal que documenta a realidade quotidiana de uma cidade, a real humanidade de Reis é sublinhada pelos seus casos amorosos e pelas emoções que o tomam arrastado que é pela turbulência de um tempo da história ibérica coberto pelos fumos vermelhos e negros da revolução e da repressão. E as duas mulheres que Reis ama – encarnadas pelas espantosas Catarina Wallenstein e Victória Guerra – concretizam a poesia que escreveu, ilustrando-a com uma ironia que resulta poderosamente sugestiva. Pelo que, finalmente, Ricardo Reis se torna personagem de Saramago, mais do que personagem de Pessoa – ainda que respeitando Pessoa e implicando uma leitura crítica da sua poesia.
Do mesmo modo, Saramago desenha Fernando Pessoa como uma personagem sua. Num post de facebook que Saramago publica em 2008, lê-se: “‘Dá-me os óculos’ foram as suas últimas e formais palavras. Até hoje nunca ninguém se interessou por saber para que os queria ele, assim se vêm ignorando ou desprezando as últimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausível que a sua intenção fosse olhar-se num espelho para saber quem finalmente lá estava.” Ora, é por isso mesmo que a personagem de Pessoa em O Ano da Morte de Ricardo Reis não tem reflexo no espelho. É por ser alguém que se fez substituir pelas máscaras que usou, de tal modo que, afinal, se descobre inexistente por detrás das máscaras. Um caso de homem-vácuo, inidentificado objeto voador a quem este filme confere, com a representação muito segura de Luís Lima Barreto, uma inesperada e estranha profundidade.
É o caso deste autor esvaziado, substituído pelas suas personagens, que Saramago recusa com a famosa posição que resolve tomar contra a existência do narrador. É uma posição inspirada por Pessoa, isto é, exatamente contra Pessoa. Segundo repete em várias entrevistas dos seus últimos anos, gostaria de fazer desaparecer o narrador para deixar o autor sozinho em palco, num stand-up filosófico e político. Ou seja, o autor gostaria de arrancar todas as máscaras, de modo a que a sua comunicação fosse direta, sem mediação, e, no lugar onde a teoria da literatura afirma que se encontra um narrador se devesse manifestar, afinal, a voz clara do autor ele mesmo e ao vivo. Uma comunicação autor-leitor concentrada na clareza das ideias e na força intrínseca das armas retóricas. Sem fingimento nem mistério.
O filme de João Botelho lido pelo pessoano Fernando Cabral Martins
O Ano da Morte de Ricardo Reis, livro em que Saramago transforma o heterónimo de Pessoa em personagem, foi adaptado ao cinema por João Botelho. O prof. Fernando Cabral Martins faz uma leitura do livro e do filme
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