Matar moscas era desde sempre o seu desporto preferido de Verão. Utilizando como letal máquina “A Bola” com o resumo da Volta à França em bicicleta e as últimas aquisições do Benfica, sentava-se no alpendre, esperando pacientemente que as suas vítimas pousassem para lhes desferir o coup de grace.
As moscas zumbiam atordoadas e moles pela canícula da Beira Baixa, mas aquele velho impiedoso não se compadecia e abatia-as sem piedade.
Detestava a máquina de esturricar mosquedo do café do Armindo, que fazia aquele som de fritadeira empolgada. Galhofava com as superstições dos sacos de água à porta para as afugentar e abominava o remédio para as moscas que a sua mulher o obrigava a comprar juntamente com o tulicreme para barrar no pão dos netos. “Dum dum, traz Dum Dum”, recomendava a mulher. “Diacho mulher, sou algum nazi para gasear seres de Deus”, ripostava num lamento de falso democrata cristão, como aliás são todos os democratas cristãos, falsos…
Para aquele velho, descalço e em tronco nu sob a latada ainda a apurar o moscatel, matar moscas era mais do que um simples desporto de cavalheiro desocupado. Não era um sportsman, não era um Hemingway drosófilo. Matar moscas era uma missão, um ritual de Verão que praticava como um zelota, como um Estaline insecticida e estatístico. “Uma morte é uma tragédia, um milhão uma estatística”.
Deixava uma mosca pousar na sua perna e zás! num movimento certeiro e amestrado, somava mais uma vítima á sua contabilidade homicida. “Hoje matei 67 moscas”, gabarolava-se à hora da bucha, assentando a média diária no seu caderninho-obituário do mosquedo.”Há três anos matei quase 4 mil moscas, mas agora elas estão mais espertas, parece que adivinham, as putas”.
Uma tarde, daquelas de Setembro, em que os cachos de uva já pedem mão e canivete e da serra sopra uma brisa fresca, o velho sentou-se, como de costume, na velha cadeira de balouço, esperando as suas inimigas de sempre.
Uma mosca pequena e veloz como o voo do moscardo de Korsakov zuniu-lhe várias vezes perto da perna, pousando no joelho artroso, mirando-o em desafio de curiosidade. O velho moveu lentamente a mortífera “Bola” preparando-se para aplicar o golpe fatal, mas deteve-se numa fracção, num momento congelado no tempo em que viu zumbir todas as moscas que matou, em que viu as mãos novas da mulher velha que o acompanhou pela caminhada da vida, em que viu os netos, rápidos e inquietos, em que viu a pequena mosca, rápida e inquieta, pousada no seu joelho artroso.
Naquele momento parado no tempo de todos os tempos, o velho sorriu, soltou uma pequena lágrima e deixou o braço mosquicida cair inerte com as folhas de “A Bola” esvoaçando por aquele terreiro de Setembro.
O velho matador de moscas morreu, poupando a vida daquela pequena mosca, que o velou, pousada no joelho artroso, enquanto no terreiro soprava aquela última brisa de Setembro.