Lisboa, 1561. Não sabemos se Jorge Ferreira de Vasconcelos terá ficado surpreendido por encontrar a sua Comedia Ulysippo no Rol dos Livros Defesos desse ano. Talvez não. A inserção repete-se no Rol dos livros que neste reyno se prohibem de 1564 e no Catalogo dos livros que se prohibem de 1581. Tão eficaz foi a proibição que a obra desapareceu sem deixar rasto, nem sequer a notícia da data de impressão. Não se saberia da existência desta edição não fosse o frontispício da 2ª edição emmendada de 1618 e, naturalmente, o facto de constar nos Índices acima descritos. Digamos que pelas atribulações próprias do tempo e das circunstâncias, a 1ª edição da Ulysippo desapareceu, a Eufrosina, após o êxito assinalável de 4 edições sucessivas (1555, 1560, 1561, e 1566) saíu de circulação após a entrada no Índex de 1581 e a Aulegrafia não chegaria a ser impressa em vida do autor. Dom António de Noronha, “O dos óculos” genro de Vasconcelos, depois de Rodrigues Lobo ter metido a mão, em todo o sentido, em seara alheia, com a edição da Eufrosina em 1616, edita a Ulysippo em 1618 e no ano seguinte a Aulegrafia. Todas estas impressões seiscentistas se encontram censuradas.
Mas, porque nem só de censura vive o teatro, falemos do enredo desta fulgurante peça. A Comedia Ulysippo segue o modelo plautino, cruzando várias intrigas amorosas. O velho e devasso Ulysippo tem encontros fora de portas com uma rapariga, criada da casa. Hypolito, filho de Ulysippo e de Philotecnia, ama Florença, uma jovem dama cortesã explorada pela mãe, a velha Macarena, e obrigada por esta a aceitar o assédio de Crisofilo, caixeiro dos Medices, que paga as despesas da casa, e Astolfo, o vizinho de Ulysippo. Por fim, as duas filhas de Ulysippo, Tenolvia e Gliceria, embora muito guardadas, escapam aos planos do pai de as casar, a uma com um velho e a outra com um viúvo, ambos ricos. Quase poderíamos dizer que a história, acaba por ser o crime e castigo do cidadão Ulysippo.
A acção da comédia passa-se “nesta cidade de Lisboa”, especificamente na casa de Ulysippo, numa rua perto do então postigo solitário de S. Roque; na casa de Macarena, porta aberta para os homens da cidade e na paisagem arborizada, onde se encontra o “mosteiro”, a “capela” e a “quintam” de Ulysippo, em S. Bento, onde os jovens mancebos têm entrevistas secretas com as filhas deste, com vista a obterem um bom casamento.
E, se teatralmente falando, os espaços representados nesta ficção correspondem ao modelo estabelecido por Serlio para a comédia, os espaços aludidos da “ribeira”, do “carmo”, de “ũa horta da Mouraria”, “santa Barbora”, ou “paço” (a que se juntam destinos de evasão como Mazagão ou China), desenham uma cidade muito concreta e vibrante. E o que é que Vasconcelos nos quer dizer exactamente sobre Lisboa?
Anson C. Piper, no artigo “The Lisbon of Jorge Ferreira de Vasconcelos”, de 1967, oferece-nos um olhar do outro lado do mundo, sobre uma obra que considerou a melhor fonte literária do século XVI. Falando do protagonismo da cidade de Lisboa na obra do comediógrafo, refere que o autor rodopia entre o respeito por um Portugal investido de um passado heróico recente, e o crescimento fácil causado pela obsessão pelo ganho material. Em sua opinião a “tinge of melancholy” que Bowra encontrava no fim dos Lusíadas já está presente nos escritos de Vasconcelos, obra que reflecte o mundo da nobreza e seus vícios e as causas da decadência moral do país “signs of official corruption and national decay”. Desta vez, os sintomas do desastre eminente são tomados a partir da leitura do texto da Comedia Aulegrafia, e do desconcerto da vida no paço, um lugar onde poucos conseguem entrar, levando uns o galardão de outros, e onde “há muytos queixosos, & poucos contentes”.
As personagens de Vasconcelos sentem o vazio, a decepção. Na Eufrosina, idealiza Lisboa e sente saudades, mas na Aulegrafia e por fim, na Ulysippo ataca a moralidade da cidade. Através de Vasconcelos vemos que há uma comunidade exausta, doente e de mau humor. Oficiais invejosos à procura de emprego, e a resposta desesperada de fugir de Lisboa, e mesmo de Portugal, até porque descobrem aí uma vida atormentada pela miséria.
A Lisboa antiga ressurge aos nossos olhos através da fortíssima teatralidade do texto, da graça das personagens, da pujança do discurso, dos esquemas e vícios lisboetas e, os seus habitantes, embora com roupagens quinhentistas, são de uma modernidade impressionante.