Dias úteis
Festival Literário da Madeira, 20 de março de 2014
O movimento de rotação condena-nos a isto. Os dias são feitos daquilo que nos acontece, e do que não nos acontece. Dos sustos e sobressaltos, dos pretextos fúteis (“que nos tornam os dias úteis”), dos cheiros, sabores, das madalenas, de “tardes que oscilam demoradas”, daquilo que protelamos, das nossas indecisões, de confusos rumores, dos nossos sucessos, das nossas falências, das nossas pendências, sobretudo das nossas pendências… E dos sonhos que tivemos de véspera, das músicas que ouvimos, dos filmes que vimos, das palavras que lemos. Hoje leio na crónica de Gonçalo M. Tavares, da VISÃO, um verso do poeta catalão, que não conhecia, Joan Brossa: “Olho os peixes dentro de água, as ideias no cérebro devem mover-se de uma maneira semelhante”. Ganhei o dia: acho que no meu cérebro as minhas ideias também devem mover-se assim, ondulantes, nómadas, aquáticas, difusas, transitórias, às vezes, andam em cardumes, e espantam-se… e fogem-me. Outras vezes, não.
Funchal, 14 de março de 2014
Tenho um sonho recorrente. Quase toda a gente tem. Quando acordo dele, sempre num alvoroço estúpido, numa desorientação de formigueiro a quem atravancaram o carreiro de propósito, fico exausta, um sentimento de sufoco acompanha-me para o resto do dia. Geralmente, começa com uma perseguição. Se estou na Europa nazi, sou judia; se estou no Brasil do século XIX, sou escrava fugida; se estou em Portugal há 40 anos, sou uma antifascista clandestina; se estou na América macartista, sou uma guionista comunista (assumo as rimas)… É, mais ou menos assim, por alto, vá…
Acredito que tal tem a ver com o facto de me sentir mais do que uma pessoa consciente de esquerda: sou subconscientemente de esquerda. Ou seja, sei colocar-me sempre no lugar do mais fraco (acho que é a definição mais básica e simplificada do que é ser-se de esquerda). Então, no meu sonho, esfalfo-me a correr, tento escapar, num desespero, até ficar encurralada, e só me restar um caminho que se estrangula e aperta, pode ou não ser submerso, até se tornar um buraco tão estreito e escuro, que sei que não vou conseguir passar.
É nesta fase que acordo (“em sonhos, é sabido, não se morre”). Sou a pessoa mais descrente que conheço, nada de signos, búzios, cartas, seitas, religiões, profetas, vidências e até algumas evidências. Não acredito na vida depois da vida, mas acredito na vida (não atmosférica) antes da vida, pois claro. A minha mãe esteve 24 horas em trabalho de parto, algo inespecificado não correu bem, um bebé demasiado grande, apesar de prematuro, não sei exatamente… Penso que venha daí esta minha claustrofobia, a ser expulsa de um útero por contrações, mas sem conseguir de todo fazer a travessia.
Mas hoje não sonhei com nada disto. Foi um sonho nada medonho, desses que a gente até se ri a dormir, como num sketch humorístico, só que depois estava numa mesa, rodeada de pessoas, e não tinha ninguém com quem estabelecer um contacto visual de ironia. Foi um pesadelo na mesma. Mais triste do que chorar sozinho, é rir sozinha. O sonho recorrente é perturbador, impediu-me uma vez de entrar dentro de um submarino. O sonho desta noite é que me assusta, e muito. O literalismo, a incapacidade das pessoas “apanharem” uma ironia, de se rirem delas próprias, e de se levarem muito a sério… É um caso sério.
Lisboa, 12 de junho de 2008
Já ando há muitos muitos anos nisto da escrita e do jornalismo. Não perco de vista a crítica muito irónica de Debussy ao falar de um compositor prolífico: “Ele não tem a menor inexperiência!”. Procuro sempre um olhar inicial e limpo (nem sempre consigo, é o mais difícil). Procuro espantar-me com coisas banais. Como os índios do Brasil que encolheram os ombros (não sei se eles dominavam esta expressão corporal, na verdade…) às iguarias que lhes ofertavam das caravelas. Mas ficaram abismados quando lhes mostraram uma galinha. E compreendo a reação, é um animal bizarro (oscila entre a apatia e o sobressalto, como diria Lispector), um dos espécimes mais próximos que nos ficaram dos tempos dos dinossauros.
Não sou convivencial, não vou a festas, não saio à noite, e, no entanto, passo os meus dias a falar com pessoas. Interessem-me mais as pessoas do que aquilo que elas têm para dizer, confesso. Enquanto jornalista, sinto-me mais confortável nas reportagens (que eu lamentavelmente deixei de fazer, sinto saudades e pena…) do que nas entrevistas. Tenho sempre a sensação de que não faço a pergunta certa no momento exato, e deixo passar imensas oportunidades, não de encurralar o entrevistado, porque não vejo a entrevista como um processo de xeque-mate, mas há qualquer coisa de xadrezista na estratégia de perguntar. Deixar avançar alguns peões primeiro, soltar os bispos e os cavalos mais para o meio, e ter sempre uma pergunta-rainha.
Uma vez fiquei uma tarde ao lado do Chico Buarque e não fui capaz de abrir a boca (era numa entrevista coletiva, um junket, diz-se…). Sempre que falo com o António Lobo Antunes, as palavras dele perseguem-me durante imenso tempo. Já não consigo ler uma crónica sua sem ouvir aquela voz, sentir aquelas pausas, aquela maneira de olhar oblíqua, aquele azul. Como se a sua prosa já viesse com audiovisual. Gostava de lhe dizer que ele é uma personagem fascinante, hipnotizante – talvez a melhor que ele próprio inventou, mas receio que ele leve a mal. E quem sou eu para “achar” coisas sobre o Lobo Antunes.
E não é timidez, é sentir-me tolhida pelo embaraço e pela minha enorme pequenez (olha, um oxímoro). Sou uma falsa tímida, os meus colegas não me encontram timidez alguma, dizem que um tímido não se exalta e não diz frontalmente o que pensa. E eu queria usufruir da indulgência de que sempre beneficiam os tímidos. Quanto a indignar-me imenso e a dizer duas vezes antes de pensar, sem pesar consequências, veio-me da infância. Fui educada depois do 25 de Abril, em minha casa levava-se muito a sério a liberdade de expressão, só não se podia conjugar mal os verbos, tratar os adultos por “você” (devíamos dirigir-se-lhe sempre pelo nome ou por “o senhor” – ainda hoje faço assim) e dizer palavrões (ainda hoje não digo).
Neste dia, saiu uma entrevista minha à romancista e ativista feminista moçambicana Paulina Chiziane. Perguntei-lhe porque é que os temas dos seus livros eram tão polémicos, sobre a poligamia, o racismo, a violação… Ela responde-me com uns olhos improvavelmente azuis: “Polémicos? Polémica é toda a vida de um africano…”
Moçambique, 1 de dezembro de 2007
Nunca estive numa guerra, não sei o que é sentir medo. Medo mesmo a sério. Geralmente perante situações assustadoras tenho uma não-reação, que os outros por uma calma impassível, mas é mais uma espécie de apatia, como se desconectasse momentaneamente as emoções. Ainda há pouco tempo, em Cabo Verde, numa espécie de naufrágio, estava mais ocupada em não vomitar e em deixar os últimos recados a uma amiga que insistia que conseguia chegar a nado a terra, num mar revolto e cheio de tubarões “herbívoros”. Prefiro quando o avião apanha turbulência, porque as pessoas se silenciam mais e consegue-se dormir melhor.
Quando na selva de Moçambique, na Gorongoza, os leões faziam estratégias rasteiras no capim, de aproximação ao jipe de caixa aberta, também não senti nada: eles consideram a carne do ser humano muito indigesta. Ou quando atravessei o castanho rio Pungue, cheio de crocodilos e hipopótamos, numa piroga de equilíbrio instável, nem pensei com quantos paus se constrói uma canoa. Mas por outro lado, fiquei arrepiada, quando segui no carro do veterinário especialista em vida selvagem (um homem vestido à indiana Jones, cheio de charme e crueza) à procura do leão que teimava em caçar na reserva. Havia que o atrair, com um facoceiro morto que ainda sangrava, depois de um duelo entre machos, uma caçadeira com narcotizantes e o som do rugido gravado de leões, emitidos pela savana, ao pôr-do-sol, nuns altifalantes instalados no tejadilho do carro.
Deve ser a tal história da sugestão de que Hitchcock falava. Assusta mais saber que a bomba está debaixo da mesa, do que ela rebentar de repente. Afinal sei o que é ter medo (sem ser em sonhos), aquela impressão na barriga, aquele som de leões a rugir aflitivamente devem tocar bem fundo nalguma fibra interior, inscrita no meu ADN, dos tempos remotos, em que éramos nós as presas, e temíamos a noite, como no filme de Kubrick, amontoados e trementes, em cavernas, a escutar o rondar dos tigres dentes de sabre. A propósito, o meu sobrinho mais novo diz “tigre de dentes de sapo”, perante a reação dos presentes emendou para “tigre de dentes de sábado”. Adoro o erro criativo nas crianças, mas também aprecio imenso o dos políticos e o dos futebolistas.
Já estive em sítios terríveis. Em favelas, bairros de lata, prisões de meninas assassinas no Brasil, escolas em África em que os assentos eram blocos de tijolo, lares de crianças seropositivas que nunca serão adotadas, hospitais onde falta ligadura e soro fisiológico para limpar as feridas, a lixeira a céu aberto de Maputo. “O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma”. (Mia Couto).
Estamos, eu e a Lucília Monteiro, muita querida amiga, excelente colega e fotógrafa, no mais agoniado dos solos. Estamos num não-lugar, no patamar mais raso de África, daqui já não se consegue descer mais baixo. No reino das moscas que aqueles vultos nem se incomodam em enxotar. Onde as crianças já nascem derrotadas. Humanos que vasculham a podridão, o desperdício mais nauseabundo, as sobras que outros humanos produzem. Irónico como entre lixo e luxo muda só uma vogal. Aqui os meninos imunizaram-se contra a cólera. Têm tinha, mataquenha, conjuntivites, problemas de pele e respiratórios. Há um menino, não mais de cinco anos, que me agarra a mão e não larga mais. Não diz uma palavra, acho que nem olhou para mim.
O nosso único contacto foram as nossas mãos dadas. Só tenho uma pastilha elástica para lhe oferecer, a um menino que precisava de um bife ou de um pacote de leite. Sinto-me a pessoa mais inútil e ridícula do mundo. Quando saímos daquele mundo fora do mundo, deixamos a roupa toda para trás, sapatos, meias, roupa interior, tudo. Não dá para voltar a meter na mala. Mas o cheiro há de pertencer-me por mais tempo. E o peso mínimo dos dedos daquele menino que eu desgrudei, um por um, da minha mão. Sinto-o agora, esse peso, no dia 30 de Março de 2014, em que escrevo este diário.
FOTOGRAFIA: ALFREDO CUNHA
Ana Margarida de Carvalho, 43 anos, jornalista, escritora e crítica de cinema. O seu romance de estreia intitula-se Que Importa a Fúria do Mar