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Não dá para transplantar. Não dá para fazer imitação. Esta é uma exposição literária de um dos maiores escritores brasileiros (e a sua universalidade ficou bem expressa nos 30 idiomas em que foi traduzido). Na estação central, bem no núcleo histórico de São Paulo, entre a correria da cidade, “que alarde”, entre os 400 mil passageiros que entram e saem dos “trens”, diariamente, criou-se um micro-cosmo, dentro do museu de Língua Portuguesa, um dos mais visitados do Estado (só superado pelo Museu do Futebol e pela Pinacoteca). E no meio da “dura poesia concreta das tuas esquinas” (o verso de Sampa, de Caetano, que se tornou hino da cidade), quase se sente cor. E no meio do inverno cinza paulista, quase se sente calor. …É uma exposição literária, repete-se, não um parque temático baiano ou “amadiano”, e no entanto, dizem-nos, serve para “cutucar preconceitos”. Por isso, à entrada está a estatueta do orixá Exu, símbolo de comunicação e união entre mundos, escolhido pelo próprio Jorge Amado, para colocar à porta da Fundação: “Se for de paz pode entrar”. E por isso, antes do visitante desembocar num longo corredor com as várias edições brasileiras e estrangeiras das obras de Amado, tem de se atravessar uma cortina de “canudinhos”, que chocalham, tocam e aconchegam… É isso a Baía, explica uma das responsáveis da exposição: “Multidão, barulho, batuque, aconchego, ser-se tocado…”
Lá dentro, todos os sentidos são convocados. O cheiro de toneladas de cacau que cobre uma parede de alto a cima. O brilho dourado do óleo de dendê, que enche garrafas dispostas lado a lado, “e lembram as dunas, a ondulação da areia”. E no meio de tudo isto, as palavras de Jorge Amado, a sua descontraída e fabulosa oralidade, que introduziu vocábulos novos no português do lado de lá: “Esses meninos de hoje não respeita os mais velhos, compadre João de Adão. Onde já se viu um capetinha destes falar em peito para uma velha encongrujada como eu? (desabafo de uma velha negra que vendia laranjas e cocadas).
Jorge Amado foi o escritor do “lado B” da Baía. “Que outra coisa tenho sido senão um romancista de putas e vagabundos? Se alguma beleza existe no que escrevi provém desses despossuídos, dessas mulheres marcadas com ferro em brasa, os que estão na fímbria da morte, no último escalão do abandono. Na literatura e na vida, sinto-me cada vez mais distante dos líderes e dos heróis, mais perto daqueles que todos os regimes e todas as sociedades desprezam, repelem e condenam”. Por isso, para além da sala dedicada à política – Jorge Amado foi deputado federal pelo PCB, Partido Comunista Brasileiro (“Camaradas! É preciso acabar com as explorações. Nós somos muitos, pobres, sujos, sem comida, sem casa, morando nesses quartos miseráveis. Explorados pelos ricos, que são poucos… É preciso que os operários se juntem em torno do seu partido, para acabar com as explorações…com os governos podres e ladrões… Fazer um governo de operários e camponeses”): – há uma outra só dedicada “ao erotismo e malandragem”. E aos bordéis. Em néon os nomes dos cabarets, muitos deles nomeados nos seus romances e ainda em atividade na Baía: El Dorado, Bataclan, Madame Henriette…Aqui explora-se o voyeurismo e o tabu. Para ler os excertos mais eróticos dos livros de Amado, tem de se encostar os olhos nuns “espreitadores” espalhados no recinto. Uns mais em baixo, outros estrategicamente colocados ao nível dos olhos de um adulto. O grau de erotismo vai crescendo, desde os espreitadores cá de baixo, acessíveis às crianças, até aos lá de cima, menos aconselháveis a menores.
Na sala da mestiçagem e religião, todos os santos e orixás (tantos), da Baía, tantas crenças misturadas, recicladas, também mestiças: “Santa Bárbara, livrai-nos de trovoadas, pestes e mordeduras de cobras. Livrai-nos dos espíritos maus, dos lobisomens e das mulas-sem-cabeça. Fazei com que meu marido tenha saldo pra gente poder ir embora pro Piauí ou pelo menos ir à Bahia ver o Santo Jubiabá, filho de Orixalá, Nosso Senhor. Eu quero que meu marido fique bom, senão a gente morre de fome, minha Santa Bárbara. Livrai meu irmão Júlio daquela peste de sinhá, que leva todo o saldo dele. Protegei nossa casa contra o espírito do caboclo Curisco, que anda armando barulho. Amén”. Uma listagem imensa de todas as misturas de raça e cores que tornam o Brasil um país tão diferente e, ao mesmo tempo, tão único. Oficialmente, são distinguidas quatro raças no país: branco, negro, pardo, vermelho e amarelo. Mas quando fizeram um inquérito à população, surgiram mais 136 designações de cores de pele, transcritas no alto de uma parede: cor de caramelo, mulato, cor de cacau seco, negro azul de tão retinto… “Olhos azulados qualquer menino pode ter, mesmo sendo o pai negro, pois é impossível separar e catalogar todos os sangues de uma criança nascida na Bahia. De repente, surge um loiro entre mulatos ou um negrinho entre brancos. Assim somos nós, Deus seja louvado!”.
As mais de 5 mil personagens criadas por Jorge Amado são representadas pelas coloridas fitinhas do Bonfim da Baía. Os seus nomes estão colados em relevo na parede. Algumas mais relevantes têm direito a um excerto áudio que sai debaixo de uns chuveiros de bengala: Gabriela, Quincas Berro d’ Água, Pedro Bala… “Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas”.
Nuns painéis de azulejo, algumas afirmações recentes do escritor, encerram a exposição: “A semana tem a medida de um século. Só tenho pena de não me restar o tempo necessário para ver no que isso tudo vai dar”.