É sempre um acontecimento. E, por norma, duplos acontecimentos. Vinte e oito anos depois do Por Este Rio Acima (inspirado na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto), e 16 anos depois de Crónicas da Terra Ardente (a partir da História Trágico-Marítima), Fausto, 61 anos, o cantor que um dia se disse maldito mas é dos mais bem-amados da música popular portuguesa, anuncia o terceiro (duplo) álbum da sua trilogia. Mais abordagens, mais piratas, escaramuças e exploradores, mais vã cobiça e sonho, mais descobertas e maravilhamentos.
No concerto de apresentação, no CCB, Fausto tocou sete canções de cada uma das obras. E revela que, no último álbum, integralmente dedicado à passagem dos portugueses por África, não virá com roupagens africanas: “Não há qualquer ritmo africano neste disco. Eu conto do ponto de vista do observador, de quem chega.” Por isso, a primeira canção, E Fomos pela Água do Rio, tem uma expressão muito clássica, europeia, de cordas e pianos. “Africanizar a música seria supérfluo e demagógico.
Todos os ritmos que vou utilizar são desenvolvidos e estilizados a partir da música tradicional portuguesa.”
Vergílio Ferreira dizia que “da nossa língua vê-se o mar”, também dá vontade de dizer que das suas canções, sobretudo das desta trilogia, se vê o mar. Mas não é o mar dos grandes feitos lusitanos, de Camões, nem o mar do mostrengo e do homem do leme de Pessoa, nem o mar das anémonas e corais de Sophia… Que mar é o seu?
FAUSTO: Eu diria que contei o outro lado da história. Não sou um nacionalista, mas considero-me um patriota e, nas minhas músicas, tentei encontrar o sentido do que a minha Pátria fez, durante os Descobrimentos. Porque me interessava compreendê-lo e adaptar esse sentido aos tempos actuais. Houve quem procurasse apenas glorificar. Eu glorifico o que há para glorificar, mas também conto o outro lado, o da gente que falhou e também matou. Nas sete canções inéditas que vou cantar agora, no Centro Cultural de Belém, conta-se o confronto, “à sombra das ciladas”, que não é meigo. Mas também há o maravilhamento dos portugueses quando encontram homens mais negros.
O choque de culturas pode dar em maravilhamento. Esse contacto pode ser enriquecedor. Mas também sabemos que o encontro de culturas diferentes pode dar naquilo que deu, e ainda dá, em guerras e conflitos, de certo modo incompreensíveis. Faço sempre essa adaptação da leitura da história para os tempos actuais
Quando anunciaram que iria, 28 anos depois de Por Este Rio Acima e 16 anos após Crónicas da Terra Ardente, lançar o terceiro álbum da trilogia dedicado às explorações dos portugueses em África, poderíamos pensar no Serpa Pinto, no mapa cor-de-rosa, no século XIX… Afinal, o Fausto recuou ainda mais, até aos primórdios dos Descobrimentos.
Sim, ainda mais para trás do que o Fernão Mendes Pinto. Gostaria muito de chegar ao Serpa Pinto, ao Capelo, ao Ivens mas depois o disco ficaria muito longo. Começo no Diogo Gomes, nos seus relatos do século XV, no Gomes Eanes de Zurara e vou parar no Silva Porto, o último dos sertanejos.
Se não tivesse vivido no Huambo até aos 18 anos, se não tivesse feito essas travessias marítimas Lisboa-Angola, se não se tivesse dado a maravilhosa circunstância de ter nascido num barco, acha que teria o mesmo interesse por esta parte da nossa História?
Olhe, dá-se um caso curioso e que eu não sei explicar. Mas sempre que viajava de Nova Lisboa (hoje, Huambo) para Silva Porto (Kuito, no Bié), era eu um adolescente, entre os meus 10 e 15 anos, era um fascínio para mim visitar a casa do Silva Porto. Tinha que o fazer sempre que passava por lá. Sabia que era um homem de barbas longas, que demorava seis meses a viajar e a negociar com os negros, que era respeitadíssimo, que abriu caminho para o Serpa Pinto e os outros. E eu hoje pergunto-me: porque é que eu, em adolescente, já sentia aquele fascínio? Nunca imaginei que, passados tantos anos, fosse acabar a minha trilogia com ele.
Quando ouvimos Crónicas da Terra Ardente dá-nos a sensação de sequência cinematográfica…
Ainda bem que utiliza esse termo, porque se acha isso desse disco, vai achar o novo muito mais cinematográfico.
Eu não sou um homem muito ligado ao cinema, confesso, é talvez uma falha na minha formação, mas considero Crónicas cinematográfico, sim. Tal como a apresentação que eu vou fazer no CCB não será uma amostragem do novo álbum mas a interpretação das sete primeiras canções. Não só para garantir uma dinâmica de concerto mais equilibrada, em termos de ritmo, como também para mostrar um pouco a viagem propriamente dita, como uma sucessão cinematográfica. E as viagens por terra, que também se fazem atravessando rios…
E afinal que rio é aquele de Por Este Rio Acima?
Nunca saberemos, Fernão Mendes Pinto não o nomeou. É na China, naquela fase utópica em que ele descreve uma sociedade perfeita e de entreajuda, à beira-rio.
É possível ouvir e gostar das suas músicas ignorando completamente o contexto histórico que lhe está por detrás, e interpretar uma música sobre uma viagem de barco como uma música de amor, por exemplo?
No Barco Vai de Saída há uma parte que diz “só vejo cores, ai que alegria” e perguntaram-me se aquilo não era uma referência aos alucinogénios e outras coisas do género… Todas as leituras são possíveis. Em À Deriva Porto Rico [de Crónicas da Terra Ardente] eles contam “servem-nos tabaco, em vez de vinho”.
Nós vamos buscar estes relatos ao fundo da história, fazemos o percurso inverso e verificamos que muitas das situações continuam a ser vividas hoje. São iguais.
Na sua geração, os Descobrimentos eram usados na escola e oficialmente como enaltecimento da nação. Agora, nos programas escolares, fala-se nos “factores económicos da expansão”… Parece que passámos da propaganda para uma visão economicista, como se a história fosse só curvas e gráficos…
O que eu procurei privilegiar, no último capitulo que fecha a trilogia, é que muita gente viajou pelo conhecimento e pelo sonho. O próprio Fernão Mendes Pinto acabou por confessá-lo… E voltou pobre, não enriqueceu, muita gente viajou pelo sonho, pela vontade de descoberta, pelo contacto com outros povos e outras culturas. No regresso, os exploradores eram recebidos por multidões entusiastas, eles revelaram mundos totalmente desconhecidos e que eu comparo com uma ida à Lua ou a Marte.
O que é feito dessa gente que se movia pelo conhecimento e pelo sonho? Onde é que eles estão agora?
Bom, não sei onde eles estão. O mundo está tão globalizado, a ideia da descoberta terminou. A diáspora continua, mas não no sentido das descobertas e da exploração.
Mas naquele tempo já era famosa a ganância dos portugueses…
O mais ganancioso era o Infante Dom Henrique, esse sim… Nas descrições das viagens trágico-marítimas conta-se que os navios iam com tanta carga que as naus já adornavam no embarque e, depois, naufragavam, quando dobravam o cabo. Mas sabe que é curioso, porque os relatos estão tão bem escritos, são tão eruditos, que levam a pensar que também aí viajava gente que não ia para comerciar, mas para conhecer. Provavelmente, nessas viagens, juntavam-se as duas coisas: as trocas comerciais e outra motivação, completamente distinta, o conhecimento pelo conhecimento.
Porque é que começou esta trilogia? Sentiu vontade de se desactualizar?
Porque me divertia imenso ler Fernão Mendes Pinto, era o meu livro de cabeceira. Em 1979, comecei a compor Por Este Rio Acima. Eu fiz parte da diáspora, os meus pais partiram, isso com certeza que me condicionou, mas não foi um acto consciente, sabe? Eu dei conta de mim a fazer aquilo sem saber porquê.
Ou será que queria, nessa altura, distanciar-se um bocadinho da actualidade?
Bom, não posso esconder que, na verdade, me cansei das canções de intervenção, já não faziam sentido nenhum, já ninguém as queria ouvir, estávamos a falar para o boneco. Foram canções úteis no momento em que foram feitas. Ponto final. Isso levou-me a uma reflexão mais cultural do que política. Senti isso, também pensando que Portugal, depois do 25 de Abril, estava a reencontrar-se com a sua primeira matriz cultural greco-romana, estava a abandonar o imaginário do Sul para se reencontrar com a Europa, como aconteceu. Tudo isso me fez pensar que já não fazia sentido o universo da canção de intervenção. Fazia sentido interrogar-me de onde vimos, para onde vamos, o que já fomos, de onde já voltámos, o que haveremos de ser…
Mas a Europa de que falou com alguma benignidade em Para Além das Cordilheiras, também já não é nada do que foi. Entraram países, agora já nos impõe alterações na legislação laboral…
Pois [risos]. Eu já fui crítico em relação àquilo que se chamava CEE, mas depois deixei de ser quanto à UE. A Europa já foi cenário de tantas guerras, como até de uma que eu não esperava, com o desmantelamento da Jugoslávia, que só a unidade dos países europeus poderá evitar futuras guerras. Impressioname que os etnocentrismos comecem a renascer. São sempre perigosos.
Na música Atrás dos Tempos Vêm Tempos revelava algum optimismo. E agora?
Eu vejo sempre o mundo com um certo optimismo, ainda que constate os seus recuos. Nós vivemos um período do capitalismo financeiro mais barato que há, mas enquanto vejo os especuladores marchando, também se vêem manifestações contra essa mesma especulação, por toda a Europa.
Essa circunstância não devolve algum sentido às canções de protesto?
Eu já voltei, não esperei. Chama-se A Ópera Mágica do Cantor Maldito [2003]. E com esse disco denunciei.
Mas já não vai voltar a cantar que o que é preciso “é dar porrada no patrão”?
Não, a isso já não volto, mas denunciei o capitalismo de casino… De qualquer forma, sabe que, voltando às viagens, estas também denunciam. A ganância que continua a existir. São valores que permanecem, infelizmente.
A Rosalinda é uma canção de intervenção, um hino à ecologia, e nunca deixou de a cantar…
É verdade.
Mas incluiu-a numa colectânea de canções de amor…
Mas as canções de intervenção também podem ser canções de amor. Diz-se de uma forma suave aquilo que está mal, em termos de ambiente. Foi uma canção feita fora de tempo, as pessoas nem estavam muito despertas para as questões ecológicas.
A Central de Peniche, “lá para Ferrel”, nunca aconteceu…
Pois não [risos], felizmente. Há pessoas que chamam à praia do Baleal a praia da Rosalinda. As canções de protesto não têm de ser gritadas, às vezes suavemente dizem-se as coisas. Mais tarde, revisitei a Rosalinda [em Histórias de Viageiros], a dizer “já foste linda Rosa”, mas aí já ela está vencida pela sociedade de consumo.
Gosta de viajar?
Não, nada. Eu viajo de cabeça. Viajo à força de fazer concertos, mas sem gosto. Não me agrada o avião. Não tenho nenhum fascínio pela viagem. Prefiro ler o que os outros dizem e viajar por eles.
E de barco?
Muito menos [risos].
Parece uma contradição…
E também tenho superstições. Não no sentido religioso que a palavra possa conter, mas com base na ideia de que a conjugação de determinados factores pode levar a um outro. Se quiser explico-lhe assim: caneta minha que assine cheques ou saiba fazer contas não escreve canções [risos].
Porque já vai contaminada?
Exactamente.
Portanto, ainda escreve à mão…
Escrevo, escrevo. Primeiro em papel A4 reciclado e só depois em computador. Tenho uma letra feia e complicada, por vezes não percebo uma palavra ou outra. Mas não passa por aí, a minha relação com a escrita tem de ser mesmo caneta/papel. Uso canetas confortáveis, nem sei as marcas, mas tenho de acabar as canções com a mesma, até ao fim. Se ela me desaparece, fico em pânico [risos]. Tive de impor uma certa disciplina em casa: ninguém pode mexer nas minhas canetas.
Mas numa casa habitada por dois cães e um papagaio podem suceder acidentes…
Eles passam lá pelo meu escritório mas não tocam nas canetas [risos].
Viajou muito de barco, acompanhado pela sua mãe…
E quer melhor companhia? O novo disco termina com um texto que dedico à minha mãe, que era da Beira Alta, morreu em África e ficou lá. Ela foi uma espécie de welwitschia mirabilis, uma flor do deserto. Acho que a minha mãe foi isso. África foi uma coisa tão inesperada para ela… mas teve de renascer lá. Quando chegamos a um país estrangeiro temos de nascer de novo.
Voltou a Angola?
Nos anos noventa. E vi um povo ao deus-dará e os governantes a governarem-se. Pessoas desprotegidas e os políticos dedicados à tomadia. Portanto, uma Angola pior do que aquela que era a Angola colonial. Não tenho dúvidas disto. Vamos ver, agora que a guerra civil terminou, o que vai suceder.
Sente-se uma pessoa deste tempo?
Francamente, não sei. Talvez tenha alguma capacidade de me adaptar, excepto às novas tecnologias. Há muita coisa que me faz falta. Mas quando escrevo sobre coisas do passado não sou saudosista.
E estas novas pessoas?
Há sempre uma guerra geracional latente e constante. Lembro-me de ter sido agredido, no sentido verbal, por usar camisa de flores e boca de sino. Agora usam umas calças estranhas aos meus olhos, mas acho que é boa geração, sabe? Penso que é gente que não tem nada a esconder, porque mostra as cuecas, e penso que deve ser gente honesta, porque têm uns fundilhos até aos joelhos e assim não conseguem fugir da polícia [risos]. Por isso, é gente boa, de certeza.
Não estava a falar desses miúdos simpáticos…
Há outra gente antipática, pois é. Vivemos num mundo agressivo, neoliberalismo é uma metáfora para esconder um nome que é o do capitalismo selvagem. O pequeno poder é o pior, normalmente quem exerce um grande poder é magnânimo. Aquele que exerce o pequeno fá-lo para demonstrar que tem algum. Isso é triste e pobre. Olho para isso com alguma desconfiança, porque é o pequeno poder que se quer instalar em grande força com a regionalização, e é sempre muito mesquinho, porque, para se afirmar, tem de contrariar, tem de dizer que não, que não pode…
O Fausto pertenceu à geração que regenerou o País mas que não soube passar bem o testemunho…
Estou de acordo consigo, não passou bem. O 25 de Abril desejou muito mais do que aquilo que deu. Uma pessoa da minha geração que tivesse pensado que, com o 25 de Abril, se alterariam profundamente as coisas, está desiludida, sabe perfeitamente que o 25 de Abril não conseguiu atingir os seus objectivos. E que até houve uma regressão.
Justamente por isso é que lhe perguntava se não fazia sentido recuperar a canção de protesto. O rap não estará a fazer isso?
Desculpe, mas não posso concordar. Esse é um protesto tão folclórico quanto ineficaz, porque é absolutamente reabsorvido pelo sistema. Os cantores de protesto da minha geração continuam a ser os mais incómodos. O sistema absorve aquilo, é discurso folclórico, às vezes bizarro, parece que está a contestar o sistema mas o sistema está a rir-se deles. O sistema não se incomoda com isso, até os edita e promove.
Deixa-se fascinar por palavras?
Há palavras notáveis, que caem em desuso como “rapariga”… Agora, diz-se mais depressa “gaja” ou “chavala”… Impressiona-me muito a introdução de novos termos puramente geracionais, transitórios, de moda e de meios localizados. Em minha casa, não entra um certo dicionário que institucionaliza o termo “bué”. A geração futura já não vai reconhecê-lo, não está reconhecido pelo tempo. E vem um prof introduzi-la no nosso vocabulário.
Mas não lhe parece que a maior crioulização da nossa língua virá pelos termos em inglês?
Isso é forte e feio. E as pessoas usam palavras em inglês de uma forma tão pomposa e tão saloia, pensam que isso as valoriza… Isso é avassalador e imparável, estamos a assistir a uma nova romanização, que é imparável, nada a fazer. E o acordo ortográfico… Sermos todos obrigados a abrasileirar a língua por imperativos diplomáticos, porque é da conveniência dos senhores embaixadores…
Os discos que forem editados a partir do próximo ano já vão ter nova grafia das letras?
Nunca o permitirei, fica já aqui declarado. Nunca aceitarei este acordo. Óptimo sem “p” não existe!
Esta trilogia, todas estas viagens e exploradores encerram um mundo tão masculino…
Sem dúvida, é verdade, é muito curiosa essa questão. De tal forma que a partir de Por Este Rio Acima os coros são só masculinos. Nos relatos, a presença da mulher está absolutamente desmaiada.
Mas, ainda assim, elas não estão ausentes das suas músicas, mesmo quando diz, a despropósito, “Ó Ana vem ver”…
Sim [risos], é quase forçado. No Por Este Rio Acima, há referências a duas mulheres, à noiva raptada e a uma cristã chinesa chamada Inês. Nas Crónicas há referências vagas…
E no novo disco há uma canção que fala de umas mouras muito atiradiças…
É uma canção algo erótica. Fiquei a imaginar, pelos relatos, dois saloios portugueses feitos reféns a olhar embasbacados para estas mulheres árabes, avantajadas, a bailarem danças exóticas, a fazerem gestos obscenos e a meterem-se com eles [risos].
Não vai ao cinema, não vê muita televisão… Ouve música dos outros?
Sou muito selectivo, os músicos vão-me contando… Uma vez, uma pessoa mais velha disse-me “sabe, eu só ouço as minhas coisas”, e eu, na altura, não compreendi isso. Hoje, compreendo, porque temos tendência a fechar o ciclo. Significa que se a pessoa conseguir definir bem o universo da sua própria música isso é uma coisa feliz. É ter a sua própria escola, algo absolutamente definido, e então cada vez menos tem tendência para ouvir os outros. Não quero descobrir, ando na fase do fecho, uma tendência estranha mas verdadeira. A fase das influências que se recebem acontece na juventude. Quando comecei a tocar tinha influências de muita gente, hoje procuro ter influências só de mim próprio. Fechei. Sem necessidade de aprender mais coisa nenhuma a não ser desenvolver aquilo que nós já criámos. Penso que isso na pintura existe. Um pintor que pinta sempre o mesmo quadro, tentando aperfeiçoá-lo. Eu estou numa fase que caracterizo como um ciclo que se vai fechando e outro que se vai abrindo, que é um olhar sobre a própria obra. É pintar o mesmo quadro, sempre diferente.