Ana Margarida de Carvalho
Há uns sussurros iniciais. Um murmurejo insidioso. Ou uns ruídos sibilantes. Que também podem ser amarfanhares de papéis, ou deslizares de seres rastejantes e dissimulados, ou uma agulha a arranhar o vinil quando o disco já acabou. Ou então aqueles fervores húmidos no peito dos asmáticos. A versão áudio da peste que assola Tebas, a abrir a peça Édipo Rei, de Sófocles, numa versão encenada por Jorge Silva Melo e protagonizada por Diogo Infante, em cena no Dona Maria (TNDM II), entre 18 de Fevereiro e 28 de Março.
Há no ar uma inquietação, inquietação (no sentido José Mário Branco). “Há sempre qualquer coisa que está para acontecer, qualquer coisa que preciso de fazer.” Jorge Silva Melo queria dar-lhe uma atmosfera de opressão e mal-estar, uns tons alaranjados, como aqueles fins de tarde abafados em que as pessoas dizem que é tempo de tremor de terra. Com a peste começa a peça de Sófocles, in medias res, como se ensina na escola. A partir daí, põe-se em marcha “a máquina infernal”. A sequência lógica e imparável de causas e consequências, meticulosamente articuladas em flashbacks, que irá culminar em desgraças, dores e pavores. E deixar Diogo Infante (Édipo) em estado de exaustão. Curiosamente, não tanto quanto ele poderia supor: “Estou a pairar.” Quando interpretou o Hamlet, ainda no Maria Matos, outra personagem torturada e atormentada pela dúvida, que não saía quase de cena, ficou física e psicologicamente devastado. “Sinto-me mais próximo de Édipo do que de Hamlet, provavelmente preciso de fazer análise…”, ironiza. “Estranhamente esta personagem é-me muito familiar. Também eu sou precipitado, também, às vezes, tenho necessidade de agir, e tenho necessidade de saber quem sou. Eu entendo este sentimento, também eu sou assim, por vezes, não vejo o óbvio e o que está à minha frente.” Director do TNDM II, desde 2008, Diogo Infante ficou tão fascinado com o Pirandello de Jorge Silva Melo (Esta Noite Improvisa-se) que resolveu convidá-lo para encenar a peça-mestra de Sófocles e voltar aos palcos como actor: “Meti-me na boca do lobo.” Mas pronto, diz, “entreguei-lhe as chaves do carro…” “…E eu estampei-me”, acrescenta Jorge Silva Melo. “Não, entreguei-me nas mãos de alguém em quem pudesse confiar, e deixei-me conduzir, como um cego se deixa conduzir.” E é de cegueira que se trata na peça, não tanto porque Édipo fura os olhos no final, e é guiado por Antígona, desterrado. Mas porque ele, o melhor dos mortais, o mais sábio dos homens, aquele que libertou Tebas das garras aduncas da esfinge, quer ver, esforça-se sinceramente por olhar, mas não consegue vislumbrar um palmo à frente. E todos lhe dizem, insistentemente, o tempo todo: vê, vê, é preciso que vejas…
Não ver para descrer
E Jorge Silva Melo logo “viu” que tinha um problema com as traduções clássicas, influenciadas pelo romantismo, que privilegiam o verso longo. “Procuro a rudeza. Não hesito em dar voltas à oratória. Não hesito em repetir e repetir, em sincopar, em entrecortar as orações, em marcar as suspensões. Prefiro aqui o staccato à ondulação do verso”, explica. O encenador, “não se esqueçam”, é do tempo dos “poetas da escassez, como Gastão Cruz ou Sophia… Queriam-se versos em linha recta e não prolixidade”. Reflectiu sobre a peça, numa viagem de avião, “queria um texto nervoso, com vocabulário restrito e sintaxe simples. Cheio de repetições”, e a ideia surgiu-lhe como um poço de ar: “O palco tem de ser em plano inclinado, o coro tem de ser composto por 30 actores (em vez dos 15 tradicionais) e tem de haver muita percussão.”
E aí temos a peste. Na rua, há gemidos, cantos fúnebres e lamentos. A terra seca não dá flor. Nascem mortas as crianças. Aos animais vêem-se-lhes os ossos. Os elementos do coro, todos eles vestidos de casacos e cachecóis, espalham-se entre a plateia, numa dessincronia de vozes. No teatro, há gemidos, cantos fúnebres e lamentos. Virgílio Castelo é Creonte, irmão de Jocasta (Lia Gama), mãe e mulher de Édipo. É Creonte o único descasacado, que revela a razão da ira dos deuses: não se vingou a morte de Laio, antigo rei de Tebas, assassinado por mãos desconhecidas, deixando atrás da sua sombra a dúvida e a viúva Jocasta. E o assassino está em Tebas. Ele está no meio de nós. Ele está sempre no meio de nós.
Inicia-se um policial em espiral. Édipo é detective de si próprio, vai descobrir que é ele o criminoso. E todos lhe dizem, vê, vê. Mas ele não vê, e enquanto ele não vir, a peste não tem piedade, tudo contamina, tudo faz apodrecer. Tirésias, o adivinho cego, adverte-o: “O saber nada serve a quem sabe.” Édipo fica irado, Tirésias revela-lhe tudo: “Irmão dos próprios filhos, casado com a mãe. As montanhas farão eco dos teus gemidos.” Mas a Édipo fecham-se-lhe as pestanas. Jocasta anda em redor dele, no terror do prenúncio: “Esquece, são palavras ao vento.” Não ver para descrer. Mas nada fará travar a máquina infernal.
Jorge Silva Melo explica que foi nesta peça que, pela primeira vez, Sófocles desvenda os pormenores do assassínio de Laio. Ao que parece, uma mera altercação de trânsito. Édipo vinha perturbado do oráculo que havia previsto que ele mataria o pai e casaria com a mãe e vem-lhe um condutor insolente que não se desvia da berma. Enfurecido, Édipo mata a comitiva toda. Inclusive aquele que tanto se parecia com ele – em mais velho.
Foi também a primeira peça em que se alteraram os cânones, continua Jorge Silva Melo, e se autorizaram três actores em palco (normalmente só se admitiam dois), por isso existe uma cena em que contracenam Édipo, Jocasta e Creonte.
O novelo desfia-se a um ritmo vertiginoso em direcção ao abismo. Entre o reconhecimento e a peripécia. A uma boa notícia sucede-se uma má, com uma boa fortuna alterna-se uma má – o que obriga Diogo Infante a oscilações constantes entre emoções antagónicas. Os deuses não levam a bem estes passos de arrogância e de autodeterminação dos homens. A fatalidade está em curso. Édipo, o bebé que nasceu com a maldição de matar o pai para casar com a mãe, foi amarrado pelos pés (daí o seu nome) e levado para as montanhas, mas salvo pela piedade de um pastor. “Para os gregos o incesto com a mãe é inverter a cronologia. Ao colocar-se no lugar do pai está a subverter-se a ordem do tempo. Isto era impensável para os gregos”, explica o encenador.
Quando, depois da matança da encruzilhada, Édipo se dirige para Tebas enfrenta o célebre enigma da esfinge: “Que animal tem quatro pernas de manhã, duas ao meio dia e três à noite?”. Édipo, o sábio, o clarividente, responde: o Homem. Ou seja, ele próprio. E já antes de entrar em Tebas, se autodenunciava. E o detective desvendava o criminoso. Foi parricida inconsciente, deu a vida do próprio ventre de que nascera, mas sem o saber. Nada premeditou, nada ambicionou. Édipo era um homem justo. Queria ver. Todas as cenas de violência são invisíveis, passam-se fora de cena: o enforcamento de Jocasta, Édipo a furar os olhos com o gancho dos cabelos da mãe/mulher. Não há sangue na encenação de Silva Melo, a cegueira é dada com uma simples tarja nos olhos, como aquelas que aparecem nas fotos dos jornais para que as pessoas não sejam identificadas. Édipo vem de túnica branca, larga o casaco H&M, já pode ser grego, outra vez. O coro deixa-nos com o mais perturbante e desalentado remate da condição humana: “Nunca chames feliz a um homem enquanto não tiver atingido o fim da sua vida.” Mas Édipo tem a última palavra. A pedra na engrenagem do fatalismo. Ele cega-se para não contemplar a sua desgraça. É o seu gesto de livre arbítrio. E de liberdade. O que também é uma maneira de sair vencedor.
PS:
Ensaio sobre a Cegueira
Considerada por Aristóteles, na sua Poética, a mais bem construída das tragédias gregas, Édipo Rei, escrita por Sófocles por volta de 427 a.C., cumpre escrupulosamente o avanço da narrativa através da peripécia e do reconhecimento e a lei das três unidades: a acção decorre de um mesmo acontecimento, o espaço concentra-se na cidade de Tebas, e o tempo reduz-se às 24 horas. No quadro de Ingres, Édipo responde ao famoso enigma da esfinge, episódio que não consta da peça, dado que à época era do conhecimento geral.