Quando começarem a ler este livro não se surpreendam com a estrutura. “The Book of Mr. Natural” de Robert Crumb não é uma novela gráfica no sentido habitual do termo, antes uma coletânea de histórias curtas publicada ao longo de décadas (de 1967 até aos anos 1990), protagonizadas por uma das personagens icónicas de um dos mais icónicos autores de banda desenhada norte-americana.
Podia ter acrescentado um qualificativo a “autor”, tal como “underground” ou “alternativo”, os que mais se associam a quem assina R. Crumb. Mas este tipo de categorias artificiais são úteis apenas na sua preguiça. É certo que se podem definir movimentos importantes nos anos 1960-70, como os “Underground Comix” (pequenas publicações autoeditadas, geralmente de natureza satírica), que depois ganharam visibilidade, desaguando nos “Alternative Comics” (a alternativa era, essencialmente, à BD infantil ou de super-heróis). E esses movimentos foram fundamentais no crescimento da moderna BD norte-americana, com o trabalho de autores como Crumb, Gilbert Shelton, S. Clay Wilson, Kim Deitch, “Spain” Rodriguez, Justin Green, Lynda Barry, Harvey Pekar ou Gary Panter. Mas estas são designações que, classificando autores de forma cómoda, tendem a limitar a sua avaliação, mesmo porque estes conceitos em banda desenhada são bastante menos amadurecidos do que noutras formas de arte (surrealismo, expressionismo, etc.). E a banda desenhada “alternativa” é hoje alternativa à antiga banda desenhada alternativa, recuperando modelos clássicos, como no trabalho de Chris Ware. Por outro lado é deprimente ter de limitar qualquer discussão sobre Carl Barks à Disney, ou Jack Kirby aos super-heróis. São, como Ware e Crumb, grandes autores de banda desenhada, que vale a pena conhecer. Ainda por cima, R. Crumb nunca seria de catalogação fácil.
Nascido em Philadelphia em 1943, Robert Dennis Crumb começou a trabalhar em Cleveland (onde conheceu Pekar, com quem colaboraria), ilustrando cartões para a American Greetings. Essa primeira experiência poderá ter influenciado o seu estilo caricatural redondo e extremamente legível, reminiscente de autores como E.C. Segar (“Popeye”) ou Bud Fisher (“Mutt and Jeff”). Algo que, ligado a opções narrativas também clássicas ajudou a tornar o seu trabalho tão pioneiro e distinto do dos seus contemporâneos, por subverter os modelos em que se inspirou, e jogar com as espectativas dos leitores quanto aos temas abordados. Mas Crumb terá sido igualmente influenciado por coisas tão diversas como o LSD, ou a mudança para San Francisco em 1967, onde se imergiu na contracultura dos anos 60-70. Mas é suposto o autor de alguma da mais contundente BD satírica que se produziu neste período, também com claros contornos de autoanálise, isolar-se numa vila em França a partir de 1991 e permanecer quase incomunicável? Ou publicar uma versão ilustrada integral do Livro do Genesis (2009)? Ou ter interesse obsessivo por música folk, jazz e blues do início do século XX (que também toca)? Ou ter os seus problemas pessoais e familiares expostos de forma tão cândida no premiado documentário “Crumb”, de Terry Zwigoff (1994)? Ou, algo muitas vezes obscurecido em análises ao seu trabalho, ser acusado de racismo e sexismo? Se catalogar autores pode ser difícil, catalogar R. Crumb é particularmente penoso, pertence a um daqueles clubes restritos que apenas têm um membro.
E “Mr. Natural” é a obra ideal para, penetrando no seu universo, perceber isso mesmo.
Uma das impressões mais imediatas é a coerência narrativa e gráfica da obra; fora algumas diferenças de grossura no traço, a meticulosidade do trabalho de Crumb faz esquecer que se leem histórias publicadas com décadas de intervalo. Todas protagonizadas por Mr. Natural, um diminuto e barbudo guru californiano de origens misteriosas, que, tal como o seu criador, se recusa a ser catalogado. Parece ter poderes místicos, mas comporta-se de forma muito pouco condizente com eles. Parece um aldrabão explorador, mas pode ter um discurso profundo. Na verdade Mr. Natural só faz sentido enquanto contraponto ao mundo “normal”, que tanto o glorifica, como o ignora, mundo esse representado por Flakey Foont. Personagem alta e desengonçada (como o seu autor) cujo nome sugere indecisão, Flakey vai evoluindo de uma espécie de discípulo recalcitrante de Mr. Natural no bairro de San Francisco mais identificado com as lutas dos anos 1960-70 (Haight-Ashbury) para uma vida de classe média nos subúrbios, de onde o seu antigo guru o vem desencaminhar. As interações entre Mr. Natural e Flakey Foont têm na verdade elementos que sugerem estarmos em presença de um diálogo interno, um conflito permanente entre viver no momento e sem inibições (Mr. Natural), e adaptar-se socialmente àquilo que se define como uma existência “normal” (Foont). Os pontos mais fortes (e polémicos) do livro surgem a partir desta oposição, que Crumb gere de maneira notável.
Nas primeiras histórias o fulcro é Mr. Natural enquanto guru místico, mas sobretudo a crítica à cultura que o tornou possível, dos que seguem princípios e líderes carismáticos sem tirar disso consequências reais. Não que R. Crumb seja assim tão linear: para além de uma existência boémia desprendida e uma crítica ácida a tudo o que o rodeia (sobretudo outros místicos) é impossível saber que princípios ou planos de ação concretos Mr. Natural defende, e as constantes transições entre os discursos lúcido e aldrabão (ambos articulados e corrosivos) vincam que o que parece estar em causa é o próprio meio caricaturado. Nesta fase incluem-se ainda algumas representações (de personagens negras) que teriam levantado mais polémica se tivessem sido realizadas por outros autores. Mas nada que chegue aos calcanhares da representação do ideal feminino de Frakey Foont, cuja presença marca de forma indelével as últimas histórias.
Ninguém conhece Cheryl Borck pelo nome próprio, antes pela alcunha “Devil Girl”, que representa, de facto, o programa-base da personagem. Alta e voluptuosa, Devil Girl transpira uma sexualidade agressiva por todos os poros, e claro que, acicatada por Mr. Natural, vem transtornar a existência casada e suburbana de Flakey Foont; juntando deste modo o tema transgressor da sexualidade ao diálogo entre os dois modos de vida que tinham dominado as histórias anteriores. Mas, para além de parecer representar apenas uma libido descontrolada, Devil Girl é também facilmente domesticada por Mr. Natural que, na história mais polémica, a transforma num corpo sem cabeça, para uso lúbrico do fascinado Flakey. Não que, mais uma vez, Crumb seja tão óbvio e linear como esta breve descrição sugere: estas são histórias que terão sempre várias leituras, entre o horror pela tipificação, e a admiração pela abordagem franca ao desejo. Até porque o trabalho narrativo do autor a gerir a espiral de desagregação de Flakey Foont, e a manipulação de Mr. Natural, é de facto brilhante. No entanto, se Devil Girl representa algo que transcende a sua figura, a representação não evita um retrato nada lisonjeiro, de certo modo “completado” pela desconfiada (e quase assexuada) mulher de Foont.
Como será este aspeto de “Mr. Natural” recebido hoje? Não é muito difícil prever que deverá marcar o livro, sobretudo por parte de um leitor incauto que o aborde enquanto obra fundamental de um autor da contracultura norte-americana dos anos de 1960-70. Mas, mais uma vez, o catalogar fácil nunca foi aqui grande opção.