Livro ambicioso escrito por Daniel Galera e com desenhos de Rafael Coutinho, “Cachalote” é outra boa aposta da Polvo na nova banda desenhada brasileira, embora mais pelo(s) ponto(s) de partida do que por uma chegada que não chega verdadeiramente a ocorrer. Cinco histórias individuais, cinco protagonistas masculinos fortes que se veem (e que querem ser vistos) de uma dada maneira. Mas que hesitam no caminho a seguir, também por via dos obstáculos que lhes vão sendo impostos, os “outros” que teimam em não se adaptar à sua narrativa. Uma superestrela de cinema chinesa em decadência, que revisita tempos de glória fugindo das tragédias que despoleta. Um escultor consagrado que se vê envolvido num estranho filme onde um realizador adepto do “cinéma verité” lhe pede para fazer de si mesmo. Um escritor bloqueado que procura um relacionamento saudável com a ex-mulher e filha. Estas três personagens formam um triunvirato que glosa formas de Arte mais clássica, as suas histórias giram à volta de como se encara a criação, de que modo se distingue da vida em geral, quais os seus custos. As outras duas linhas narrativas seguem, por um lado, um humilde lojista cuja relação com uma bela e estranha mulher vai por em causa a maneira como encara o seu principal modo de expressão, o “bondage”; e, por outro, um clássico jovem diletante inútil e mimado que tenta resolver os seus problemas com uma ainda mais clássica fuga para a (e pela) Europa.
Embora pudessem ser mais desenvolvidas, cada história tem interesse e individualidade, está bem construída na definição dos protagonistas, e sobretudo nos pormenores que os marcam. O argumento de Galera é preciso, e dá espaço para o desenho de Coutinho respirar. Embora as escolhas do argumento necessitem de muito espaço (levando a um avolumar da obra), e a representação de figuras humanas às vezes faça com que por vezes se percam algumas das (muitas) personagens secundárias, cada história individual de “Cachalote” desenvolve-se de forma lógica, com destaque para os dilemas do escultor/ator, cujo percurso forma o fulcro do livro. Umas são mais interessantes, umas terminam de forma mais aberta, umas parecem mais acessórias do que propriamente úteis. A questão é saber de que modo se intersectam ou, sobretudo, potenciam. E a resposta é: infelizmente pouco. E uma história (mais ou menos) à deriva é mais aceitável do que cinco que parecem existir apenas para provar o virtuosismo de autores empenhados em criar narrativas complexas.
Há sempre a hipótese de “Cachalote” não ser bem o que parece, de as suas histórias constituírem, como algumas incongruências e a introdução e fim sugerem, parte de um todo misterioso mais vasto. É uma solução possível, mas nem toda a gente pode ser David Lynch (o de “Mulholland Drive”) ou Gus van Sant (o de “Elephant”), às vezes nem os próprios o conseguem por inteiro. “Cachalote” tem várias ideias interessantes na sua concepção, faltou-lhe alguma capacidade para as selecionar, ligar e concretizar.
Cachalote. Argumento de Daniel Galera, desenhos de Rafael Coutinho. Polvo. 272 pp., 25 Euros.