“A pior banda do mundo” decorre num universo parecido com o nosso, temporalmente contemporâneo mas gráfica e visualmente algures nos anos 1930-50, onde o anacronismo, o pormenor ridículo, a redundância, a inutilidade, e a perda de tempo foram alcandorados a Belas Artes. Nas histórias curtas (duas páginas) que compõem a série personagens de olhar baço deambulam por um mundo sépia procurando, nunca da maneira mais simples ou direta, catalogar sonhos e misteriosas ocorrências, descobrir curas para a estultícia, evitar a massificação de telecomunicações, ou o “progresso” em geral. Sobretudo, inventam ficções elaboradas mais interessantes do que as realidades a que foram fadados. Os próprios títulos dos diferentes volumes revelam desde logo esta atitude: “O quiosque da Utopia”, “O museu nacional do acessório e do irrelevante”, “as ruínas da Babel”, “A grande enciclopédia do conhecimento obsoleto”, “O depósito dos refugos postais”, “Os arquivos do prodigioso e do paranormal”. De resto, uma das virtudes desta nova edição é permitir ver a evolução de conceitos e as ligações que o autor estabeleceu ao longo da série, que parece mais una (e menos repetitiva) neste formato.
As características fundamentais das histórias de Fernandes são a convicção das suas personagens em participar com zelo nas tarefas que lhes são propostas, por mais absurdas que sejam; bem como a recusa do autor em as abandonar à sua sorte. Se são permitidos olhares “externos/internos” que contextualizam o universo (no sentido em que certas personagens acham ridículas as atividades de outras, mas não as suas), há a noção plena de que este mundo de pequenos funcionários, seguidistas medíocres, paralisados hiperativos, incompetentes convictos, e visionários inconsequentes é também um universo de gente honesta que, quase sempre, faz o melhor que pode e sabe. E isso, obviamente, é o mais assustador de tudo. Apesar de não se falar em fome ou guerra, e apenas surgirem algumas mortes caricatas (“pior” é um conceito relativo), ler “A pior banda do mundo” implica a possibilidade de transição rápida entre o sorriso irónico perante a verve de Fernandes e a inépcia das situações retratadas, e o horror de reconhecer uma mera ficcionalização de um mundo que poderia ser muito melhor.
Outra das caraterísticas marcantes da série é o fluxo constante de referências e citações, das quais a mais assumida é a do notável autor de banda desenhada norte americano Ben Katchor (“Julius Knipl, Real Estate Photographer”, ou a mais recente coletânea “Hand-Drying in America”), mas onde se cruzam aquilo que, neste contexto, serão todos os suspeitos do costume (de Kafka a Borges), e alguns insuspeitos. Mas o que emerge é algo muito mais interessante, e que tem claros paralelos com uma maneira de estar cinzenta (“salazarenta”?) que se reconhece como inapelavelmente nossa. Nossa, quer dizer: da maioria dos outros que vivem aqui, e que temos a triste tarefa de observar nas suas atividades fúteis com o nosso olhar crítico. Nós em particular não, claro. O pior são sempre as bandas do outros.
Como crítico (por exemplo na “Time Out”) e ilustrador José Carlos Fernandes mantém o registo de qualidade e a acidez erudita que sempre o caracterizaram. Mas continua a ser em banda desenhada que o seu talento se torna (tornou?) único.
A pior banda do mundo (volumes 1 e 2). Argumentos e desenhos de José Carlos Fernandes. Devir, 192 pp., 21 Euros cada.