Como o trabalho da editora Polvo, que tem apostado no argumentista André Diniz, começando pelo notável Morro da favela, a que se seguiram Duas luas (desenhos de Pablo Mayer) e o mais recente 7 vidas (desenhos de António Éder). O primeiro assumidamente ficção, o segundo autobiográfico; a unir ambos um mesmo tom de viagem interior, entre a terapia e a alucinação.
Em 7 vidas o argumentista expõe-se de forma assumida, relatando visitas a uma terapeuta especializada em sessões de regressão, na qual supostamente se revisitam vidas passadas. O registo inicia-se em tempos históricos recentes e reconhecíveis, evoluindo depois para contextos mais antigos, e até abstratos. Se as imagens mentais evocadas nessas sessões correspondem mesmo a vidas passadas, como o autor parece crer, ou a projeções nas quais tenta alegoricamente abordar e resolver diferentes aspetos da sua vida, concedendo-lhes um significado que o ambiente sobrenatural tende a (semi)neutralizar, de modo a não serem totalmente assumidos, cabe ao leitor decidir. Seja como for, a sucessão de histórias, o encadear de temas e lições humanistas, e o modo como o leitor os usa para espelhar as suas dúvidas, são mais que suficientes para que 7 vidas seja um livro a conhecer. Quanto ao desenho, o estilo redondo e quase “infantil” de António Éder marca uma certa distância com o argumento. Sendo adequado para as sequências mais oníricas, não consegue captar bem o dramatismo violento de outros momentos. Pode não ser propositado, mas o tipo de desenho “corta” o tom envergonhadamente grandioso do tema da revisitação de vidas passadas, e acaba por se revelar mais interessante do que o uso de um traço realista.
Quanto a Duas luas junta à introspeção de 7 vidas uma versão um pouco mais classe média dos dramas urbanos retratados em Morro da favela. Proprietário de um bar de bairro, o protagonista Nilo vive dias de insónia, afundado em problemas. A gestão do bar perturbada pelo excesso de familiaridade de clientes habituais e pelo assediar constante de gangues, o pavor de paternidade iminente na pessoa da namorada grávida, antigas histórias locais e familiares por conhecer e resolver. Sem conseguir enfrentar os desafios do dia a dia, a solução encontrada pelo inconsciente de Nilo consiste em mergulhar a sua psique, periodicamente e sem aviso prévio, num confuso caldeirão, onde a realidade transita de forma quase natural para imagens alucinadas, cujo alcance e sentido (do óbvio ao obscuro) o leitor é desafiado a decifrar. Neste caso a resolução de conflitos surge pois na forma de sonhos, em vez de regressões, e o desenho angular e despojado de Pablo Meyer adapta-se muito bem à difícil missão de obscurecer as fronteiras entre real e surreal, credibilizando a narrativa, e tornando Duas luas um belo livro.
Consideradas em conjunto é interessante como ambas as obras definem temáticas que implicam a fantasia como ferramenta introspetiva de autodescoberta, o escapismo enquanto cura. Mas há também a registar o modo como o argumento trata temas e personagens. No primeiro caso, misturando problemas e questões mais específicas e pessoais, com discussões mais gerais e cósmicas, sem que o todo tenda para a mesquinhez ou para a grandiloquência. No segundo, respeitando a riqueza e complexidade de figuras que nunca são santos nem vilões. André Diniz é um autor em evolução a reter, e continuar a minar o filão da banda desenhada brasileira pode reservar mais boas surpresas.
7 vidas. Argumento de André Diniz, desenhos de António Éder. Polvo 120 pp., 11,90 Euros.
Duas luas. Argumento de André Diniz, desenhos de Pablo Mayer. Polvo 136 pp., 13 Euros.