Como se esta premissa não fosse suficiente, há um segundo tema forte e controverso em “Maus”: a relação do autor com o pai, Vladek Spiegelman. Nas tensas entrevistas para recolha de informação (com consequente apelo à meta-narrativa) perpassam anos de inseguranças, discussões e ressentimentos, assombrados pelo suicídio da mãe de Art, também ela sobrevivente do Holocausto, mas prisioneira de depressão. O tom nestas secções paralelas ao relato histórico é pois semelhante ao de outras distopias familiares equivalentes, e nada lisonjeiro para Vladek. À medida que a história se revela Art Spiegelman critica no pai defeitos (no fundo reforços de estereótipos) como a teimosia arrogante, o oportunismo, a poupança extrema a roçar a mesquinhez, a incapacidade de perceber/assumir comportamentos discriminatórios, o seguir em frente sem culpa independentemente das circunstâncias, culpando outros. A questão é que a “outra” narrativa sugere que terão sido essas mesmas caraterísticas a assegurar a sobrevivência de Vladek durante a Segunda Guerra Mundial, num contexto em que as regras da barbárie mudavam a cada instante. Os defeitos feitos qualidades.
São portanto duas as escolhas ousadas, e mesmo “heréticas”, que Art Spiegelman promove em “Maus”: o uso de animais antropomorfizados numa história dramática icónica, e a aproximação da realidade de Auschwitz (protagonizada por Vladek) à realidade de Nova Iorque (protagonizada por Art). Sugerindo que o terror possível é o mesmo em toda a parte onde há pessoas, a escala (muito) diferente. A genialidade de “Maus” está no modo como tudo se une numa história em que mesmo das circunstâncias mais terríveis emergem sobreviventes. Marcados por cicatrizes, é certo, mas capazes de prestar testemunho. E mostrando ainda como uma representação tão simples como usar ratos e gatos nos pode obrigar a encarar uma realidade já muitas vezes descrita com outros olhos. Simbolismos aparentemente anacrónicos que se potenciam.
Quanto à reedição nacional há dois pontos positivos: marcar uma aposta da Bertrand em banda desenhada, e reunir os dois volumes originais (“My Father Bleeds History” e “And Here my Problems Began”). O ponto (muito) negativo é a péssima qualidade da tradução, oscilando em demasiados sítios entre o indescritível e o risível, sobretudo ao nível da construção frásica, que não parece ter sido adequadamente revista. Se a ideia era “traduzir” as falas não gramaticalmente correctas de Vladek, é um daqueles casos em que um excesso de zelo do tradutor não resultou. A reencarnação de um livro fundamental em português não merecia ser limitada deste modo.
Maus: A história de um sobrevivente. Argumento e desenhos de Art Spiegelman. Bertrand, 300 pp., 17,70 Euros.