“Sólo para Gigantes”, edição da excelente editora espanhola Astiberri (2012) é uma adaptação do livro homónimo do escritor e jornalista Gabí Martínez, que se encarrega do argumento, contando com um desenho muito interessante do também catalão Tyto Alba. Com recurso a vários comentários contemporâneos de testemunhas em “off”, a obra segue a estrutura do documentário ficcionado, tentando recriar o percurso do seu protagonista/biografado.
Marcado por conflitos permanentes, a existência no Hindu Kush foi sempre condicionada durante as visitas de Magraner, primeiro por influência da invasão soviética, e posterior aparecimento do regime talibã, no Afeganistão, mais tarde com toda a convulsão pós-atentado às Torres Gémeas de 11 de Setembro de 2001. A tudo isto junta-se um último detalhe. O Hindu Kush é habitado pelos kalash, um povo politeísta em risco de desaparecimento, que tende a ser assimilado na maioria muçulmana da região, num processo que lembra (com outros contornos políticos) o destino recente do Tibete.
Em “Sólo para Gigantes” Gabi Martínez procura mostrar todos os enquadramentos relevantes para compreender o percurso de Magraner (da obra antropológica do Padre Teillard de Chardin a “Tintin no Tibete”, da cultura dos kalash, à história política da região), mas o fulcro é aqui a construção e natureza da identidade, a todos os níveis. A identidade ameaçada dos kalash. A identidade de paquistaneses e afegãos, marcada, por um lado, pela presença ocidental, por outro, pelo radicalismo islâmico. Mas sobretudo a de Jordi Magraner, que, apesar das notórias dificuldades que Martínez tem para traçar um retrato fiável, parece ter tido deixado marcas totalmente distintas (mas igualmente indeléveis) em quem o conheceu. Francês de origem espanhola, logo aí se sente o não-alinhamento de Jordi Magraner, potenciado, não só pelas já referidas escolhas profissionais, mas sobretudo pelo modo como as exerce.
A busca de algo como o Barmanu do Hindu Kush implicaria a necessidade imperiosa de angariar fundos para expedições; bem como contactos políticos e logísticos em vários locais. Mas Jordi Magraner não é propriamente um repórter que se quer integrar da maneira mais natural possível, como Joe Sacco. A sua grande força é uma determinação tenaz e um forte sentido de justiça, a qual está sempre do seu lado, sobretudo quando os meios justificam os (seus) fins. Pouco dado à diplomacia e ao consenso, mas aparentemente ciente da sua importância, ao longo de “Sólo para Gigantes” sucedem-se episódios cada vez mais previsíveis, nos quais a energia de Magraner seduz amigos, colegas e habitantes locais, apenas para mais tarde os alienar e insultar quando sente estar a perder o controlo do projeto (ou de si mesmo). Situações equivalentes surgem com os apoios institucionais, académicos e de organizações no terreno para as quais trabalhou de modo a manter uma ligação ao Hindu Kush, como a Alliance Française ou a AMI. Martínez é excelente a reconstruir/interpretar o percurso do seu protagonista, utilizando vários saltos espácio-temporais ao longo do livro, de tal modo que quando a narrativa fecha o círculo e encontramos Magraner a viver quase sozinho na casa isolada da aldeia kalash onde viria a ser assassinado não há dúvidas que, mesmo que não tivesse escolhido esse isolamento, ele lhe teria sido imposto. E isto apesar de raramente os testemunhos contemporâneos de quem com ele privou serem sequer muito concordantes em aspetos cruciais.
Quem matou Jordi Magraner? E porquê? O livro sugere que toda gente na região sabe a resposta (mas nunca entregará um dos seus), e que esta deve ser mais ou menos óbvia. Jordi Magraner exerceu a sua irascibilidade em muitas pessoas e, voltando ao tema da identidade, procurou educar jovens kalash no sentido de preservar a sua cultura e promover a autodeterminação, o que lhe valeu acusações de homossexualidade e pedofilia. Mais uma vez, os testemunhos quanto à identidade sexual de Magraner revelam-se contraditórios e pouco consistentes, entre a dúvida e o rumor. Do ponto de vista pessoal e profissional o seu retrato permanece obscuro, com a extrapolação lógica de que, para Gabi Martínez, Jordi Magraner é o verdadeiro Barmanu, um Admirável/Abominável ocidental cuja memória possível o escritor busca nas montanhas do Hindu Kush. Um reino, como refere o título, apenas digno de Gigantes.
Apesar de ter um fulcro completamente distinto, o contexto de “Sólo para Gigantes” evoca “Le Photographe” de Emmanuel Guibert, Didier Lefèvre e Frederic Lemercier (Dupuis, 2003-2006), um notável e multipremiado tríptico sobre a assistência humanitária proporcionada pelos Médicos sem Fronteiras no Afeganistão, mesmo antes da primeira viagem de Magraner ao Hindu Kush, e onde os mesmos problemas de integração e acesso são referidos. Mas onde a segunda obra se baseia em relatos factuais e documentos fotográficos, procurando transmitir uma mensagem difícil mas universal e clara com uma estética realista, em “Sólo para Gigantes” tal opção gráfica estaria totalmente desajustada. Demasiadas coisas permanecem por conhecer, e um desenho realista corria o risco de concretizar do ponto de vista visual algo que o argumento não se atreve a definir por completo do ponto de vista narrativo. O traço fino e anguloso de Tyto Alba não é muito convincente a princípio, mas acaba por impor a sua qualidade à medida que se percebe o percurso do protagonista, por ter as características ideais para um retrato de alguém obviamente real, mas distorcido por demasiadas sombras. As linhas e os ângulos retratam bem a dureza e a violência, um traço arredondado é aplicado em circunstâncias mais calmas, a caricatura surge por vezes para definir o descontrolo emocional. Mas é sobretudo o uso magnífico da cor em aguarela que define e mantêm o tom dos diferentes momentos, sejam os muito bem documentados, sejam aqueles onde se têm de tomar as maiores liberdades narrativas.
Como sempre em banda desenhada a história define uma atmosfera, que o grafismo pode neutralizar, vincar, ou até subverter. Em “Sólo para Gigantes” consegue-se um equilíbrio muito interessante entre aquilo que se sabe que é, e aquilo que se pensa poder ser. Por entre os vários testemunhos recolhidos, e a própria interpretação que deles é feita, o desenho sugere que a Verdade estará algures por aí. Mas, tal como o Hindu Kush, está proibido de a revelar.
“Sólo para Gigantes”. Argumento de Gabi Martínez (adaptando o seu livro homónimo), desenhos de Tyto Alba. Astiberri. 2012