O mais recente livro de Schuiten 12: A Doce (ASA) é um livro inspirado numa das últimas grandes locomotivas a vapor, recuperada para o Museu dos Caminhos de Ferro, em Bruxelas. Tem ainda a particularidade de ser uma obra a solo do autor, sem a colaboração do argumentista Benoît Peeters, com o qual realiza a notável série As Cidades Obscuras. E a primeira constatação é óbvia: ou Schuiten recria aqui elementos familiares d’As Cidades Obscuras, ou, mais provável, o universo da série tem sido sobretudo marcado pela visão gráfica do desenhador, à qual Peeters contribui um tom literário, de facto menos presente neste caso.
Em que consiste o cerne do universo de Schuiten? Numa nostalgia mentirosa revisitada. Embora o estilo e a abordagem sejam distintos, há afinidades com o autor canadiano Seth: o fascínio pela estética e filosofia de um mundo idealizado que desapareceu sob o peso do “progresso”, sem nunca admitir que esse mundo, por sua vez, suplantou um anterior. Em 12: A Doce o mundo perdido é o das locomotivas a vapor, tornadas obsoletas por um teleférico eléctrico (enquanto metáfora para o avião). Por entre o desmantelamento das linhas um velho maquinista resiste, tentando salvar a sua locomotiva da sucata com a ajuda de uma estranha e bela jovem. As pontes com o álbum das Cidades Obscuras Brüsel são grandes, desde os protagonistas solitários (cuja tosse simboliza as respetivas impotências), à mulher enquanto elemento de rebeldia (retratada com um misto de desejo e ingenuidade), passando pela eletricidade como símbolo de falso progresso, ou pelo uso (simbólico e literal) da água enquanto catarse. Em vez de uma versão “obscura” da cidade de Bruxelas, verdadeira protagonista do livro anterior, surge a locomotiva número 12 (daí o jogo fonético do título), cujo destino real acabou por ser a capital belga. A narrativa segue o percurso do maquinista Van Bel (o belga?) qual Orfeu em busca da sua máquina, num mundo em que alguns elementos modernos escondem uma realidade em degradação. A história é linear, e é clara a menor vocação de Schuiten para trabalhar personagens, diálogos e narrativas paralelas de modo a disfarçar isso mesmo, algo em que Peeters é exímio.
No entanto, e como sempre em Schuiten, 12: A Doce é potenciado pelo estilo operático e teatral em que um traço clássico é modificado mudando (aumentando) a escala de elementos arquitectónicos, criando uma espetacularidade gráfica única. Acrescenta-se aqui o gosto evidente que o autor sentiu em desenhar ao pormenor os mais diversos mecanismos num belíssimo preto e branco, claramente as “personagens” que mais lhe interessaram. Um pouco como em O Segredo de Coimbra, de Étienne Schréder, onde o enredo servia de pretexto para criar um palco digno dos instrumentos do Gabinete de Física da Universidade de Coimbra. Na verdade percebe-se bem o fascínio “steam punk” da locomotiva 12, misto de linhas aerodinâmicas espaciais com a tecnologia do vapor. Mesmo que a história não seja tão conseguida, uma obra de François Schuiten é sempre um livro a reter.
12: A Doce. Argumento e desenhos de François Schuiten. ASA, 88 pp., 21,90 Euros.