Misto de reflexão pessoal e história familiar com carga autobiográfica (indireta), Portugal (ASA) é uma edição corajosa (pelo tamanho, pelo preço) de uma obra bem intencionada e interessantemente caótica, mas sobrevalorizada por ter o nome que tem.
Se o autor se chamasse Cyril Sabonis ou Cyril Popescu e o livro “Lituânia” ou “Roménia” duvido que tivesse tido o impacto que teve. Em Portugal como em França, dadas as características (e números) da comunidade portuguesa imigrante, e suas relações com este país de acolhimento em particular.
Com um desenho anguloso onde toques caricaturais distorcem com eficácia uma representação realista, o estilo de Pedrosa é agradável sem ser agressivo ou especialmente personalizado; algo que se acaba por projetar também no texto.
Portugal é uma história composta de histórias. Um protagonista autor de banda desenhada em pré-crise de meia idade, um casamento enquanto pretexto para revisitar relações familiares, uma viagem a um país que o avô deixou para sempre. Ao longo do livro sucedem-se as personagens, pequenas crises, momentos, ligações. O excelente uso de cor em tom de aguarela é importante nos momentos mais contemplativos, mas há uma tendência para deixar estes instantes “resolverem” todos os impasses e transições na narrativa, de um modo tanto menos satisfatório quanto a solução se repete. A nostagia (inquieta, resignada) que impregna as personagens acaba por ser representada (de modo algo confuso) pela ideia de um país. Até uma estadia nesse país mostrar quão inadequadas são essas generalizações.
Que fique claro: o problema de Portugal nem chegam a ser eventuais clichés na representação de uma realidade que o autor assumidamente desconhece; não há profundidade que chegue para isso, nem é o objetivo. Portugal-país é aqui um estado de espírito; para o protagonista num momento incerto da sua vida, para a sua família mais próxima enquanto vaga referência, tal como “França” o é para os parentes que voltaram a Portugal (ou que nunca saíram). Um estado de espírito melancólico e falsamente nostálgico. “Saudade” é pois o cliché propositadamente nunca referido, e chega e sobra. Mas só se sente o seu peso porque a narrativa subjacente é desfocada, feita de partes com competência e algum interesse individual, mas que não coalescem.
Falta aqui a gestão mais eficaz de diferentes tipos de ideias e registos (bem como a capacidade de terminar uma história) que se encontra em autores como Trondheim, Sfar, Blain, David B ou sobretudo Manu Larcenet, as óbvias referências neste caso. Pedrosa está claramente um patamar abaixo. O que o coloca, ainda assim, a um nível elevado, só que não tão elevado como o que transparece da maioria das apreciações a este livro.
Na verdade, a melhor obra de Cyril Pedrosa editada entre nós é a “outra”, Três Sombras (bela edição da Polvo). Num notável preto e branco esta é uma fábula que engana na sua aparente simplicidade. Por entre um contexto de fantasia e aventura (e emigração) esconde-se uma história de dor e perda, e daquilo que um pai está disposto a fazer para tentar evitar o inevitável. Menos ancorada na realidade do que Portugal, Três Sombras é, paradoxalmente, mais realista, e revela Cyril Pedrosa como um grande autor em potência, que Portugal não conseguiu (ainda) confirmar completamente.
Portugal. Argumento e desenhos de Cyril Pedrosa. ASA, 272 pp., 35.90 Euros.
Três Sombras. Argumento e desenhos de Cyril Pedrosa. Edições Polvo, 200 pp., 17 Euros.