Este ano o Festival da Amadora (Amadora BD) foi claramente mais bem sucedido em termos de público do que o de 2010. O tema central de “Humor” deu também azo a excelentes exposições, desde a mostra central (com belíssimos originais de algumas das melhores séries históricas de tiras cómicas), a outras associadas, como “Há Piores” de Derradé e Geral ou “Astérix em Portugal”. Para além de uma planta algo labiríntica a única desilusão foi mesmo a exposição dedicada aos “Peanuts” de Charles Schultz, que merecia um pouco mais.
As restantes exposições mantinham o mesmo nível elevado a que nos habituámos em anos anteriores. E o facto de estarmos habituados pode levar a criticas injustas: manter o nível no AmadoraBD e termos de exposições, grafismo, organização e catálogo é, para além de trabalhoso (e caro), algo muito digno de registo. Este ano refira-se a publicação atempada de materiais importantes como os Programas e catálogos do evento.
Talvez por haver menos ocupação no andar inferior (consta que devido a cortes orçamentais) o espaço parecia mais arejado. A área comercial revelou-se melhor e menos acanhada, já a área dos autógrafos estava mais escondida e claustrofóbica. A animação na zona comercial era muito superior à vista nos dois anos anteriores, algo que é sempre de saudar. Mais uma vez destaque para vários lançamentos de que se irão falando nos próximos tempos, como o segundo volume de “Dog Mendonça & Pizzaboy” (Tinta da China), o “Pequeno Deus Cego” (David Soares e Pedro Serpa, Kingpin Books), “A Ermida” de Rui Lacas e “Há Piores” dos já referidos Geral e Derradé (ambos da Polvo).
No último Sábado do AmadoraBD realizou-se um curto debate (cerca de uma hora) sobre o mesmo, promovido por Jorge Machado-Dias (PedroNoCharco), e com a presença do Diretor do Festival, Nélson Dona e intervenções de vários participantes, destacando-se Mário Freitas (Kingpin Books). Ou seja: a organização do Festival e alguns dos editores/livreiros que participam organizando espaços comerciais e sugerindo autores que poderão ser convidados pelo Festival. Algumas notas não exaustivas:
1- Foi curto, mas intenso e (em minha opinião), muito útil. O facto de ter sido anunciada uma reunião posterior entre os vários agentes para debater o que correu bem e menos bem no AmadoraBD 2011 e sugerir alterações para 2012 foi já de si importante.
2- A revelação principal terá sido o (nada surpreendente) anúncio de que o orçamento para 2012 seria muito condicionado. No limite o Festival poderá não se realizar caso não se considerem garantidas condições mínimas, tendo em conta o historial do evento. Pareceu-me uma posição correta de Nélson Dona. Se se trata de dramatismo exagerado (como alguns pensaram) logo veremos. Mas ninguém pode dizer que se trata de algo implausível na atual conjuntura.
3- O AmadoraBD teve de facto um decréscimo ao nível do seu orçamento já em 2011. O qual, ainda assim, se situou acima dos 600 mil Euros ao longo das três semanas que dura o evento. Muito? Pouco? Depende. O Festival de Angoulême em França tem um orçamento de 3,5 milhões, o de Beja 25 mil. É também uma questão de perspetiva e interesses. Por exemplo, tendo acabado de ver os muito diferentes mas (em minha opinião) quase igualmente pobres e pretenciosos filmes portugueses “Cisne” de Teresa Villaverde e “O Barão” de Edgar Pêra não tenho grandes dúvidas onde prefiro que seja “desperdiçado” dinheiro. Mas isso serei eu.
4- O debate não constava da programação oficial do Festival. Segundo o comentário desassombrado de Machado-Dias porque era visto como estando “contra” o evento. De facto alguns dos organizadores ou colaboradores do Festival parecem tratar qualquer crítica (mesmo ligeira ou construtiva) como uma afronta que tem de ter consequências. Algo que, sendo compreensível, é também redutor e leva a comportamentos curiosos (e muito óbvios) por parte de alguns intervenientes/colaboradores do AmadoraBD, que se abstêm de dizer o que quer que seja (publicamente) de modo a manterem uma relação privilegiada com o Festival. São feitios. Mas o debate realizou-se. E, sobretudo:
5- Nélson Dona deu a cara e respondeu a todas as questões, do meu ponto de vista. Não deu foi as respostas que alguns queriam, nem foi muito convincente nalguns aspetos, mas isso não anula o bom exemplo. Dir-se-á que era a sua obrigação. Mas quantos organizadores do que quer que seja em Portugal aparecem em público para prestar contas e defender um evento num fórum onde sabem pouco ter a ganhar?
6- Ficaram por responder várias questões relativas à organização, que têm sido repetidas ao longo dos anos. As mais constantes terão a ver com a fraca qualidade da divulgação, com a capacidade de atração de diferentes públicos ou com a escolha e enquadramento de autores convidados. Mas o facto de Nélson Dona ter admitido em vários momentos estar atento a alguns dos problemas foi muito interessante, e revelador. Esperamos haja consequências, e se passe do diagnóstico à cura (sempre complicado). Quantos organizadores do que quer que seja em Portugal reconhecem erros próprios?
7- Foi óbvio que diferentes intervenientes têm visões muito distintas do evento. Nélson Dona defendeu o ponto de vista institucional de ligação à actividade da Câmara da Amadora, que transcende em muito a BD (no limite, o Festival podia ser sobre qualquer outra coisa). Machado-Dias e Freitas a visão comercial/divulgadora específica da BD (no limite, o Festival podia ser organizado por qualquer outra entidade). Ambos estiveram demasiado irredutíveis em termos do que acham o AmadoraBD deve (ou tem obrigação de) ser. Não que não percebessem a posição contrária à sua, mas pareceram ter alguma dificuldade em dialogar a sério, no sentido de chegar a compromissos que melhorem o Festival. Mas a abertura é sempre um bom sintoma.
8- Parecia-me ter voltado atrás no tempo e estar a ouvir, não Machado-Dias e Mário Freitas, mas José de Freitas (ex-Devir) e Pedro Silva (VitaminaBD), já que os argumentos avançados para mudar o AmadoraBD eram os que nortearam o lançamento do (falecido) BD Fórum. Como digo: são questões que vêm de longe.
9- Muitas vezes mencionam-se as duas posições-chave como representadas na diferença entre o Festival de San Diego e o de Angoulême. Um evento comercial/popular, um evento institucional/artístico, respetivamente. É uma dualidade artificial e inválida, por vários motivos. Basta saber que em Angoulême a parte comercial é hiper-valorizada, e em San Diego há micro-eventos do mais obscuro e inteletualizante que se possa imaginar. O essencial é que cada um dos Festivais inclui diversas possibilidades que atraem diferentes públicos, que até podem nem se cruzar dentro do recinto (em San Diego isso é óbvio). A Amadora devia fazer o mesmo.
10- Toda a gente parece concordar que a estratégia para atribuição dos Prémios do Festival não é a melhor, incluindo o próprio Festival. Como a mudar é mais discutível, mas o diagnóstico é (aparentemente) quase universal. Já falei sobre o tema, e não me vou repetir, mas foi interessante ouvir opiniões equivalentes. Portanto, se para o ano o formato voltar a ser o mesmo será por inação ou por se ter concluído que o método é o “melhor dentro dos piores”.
11- A escolha dos autores convidados foi um ponto muito debatido, a dois níveis: os grandes autores capazes de atrair público e que raramente vêm; os autores menos conhecidos que vêm sem se perceber porque vêm. Os atrasos na divulgação dos nomes impedem ainda que logistas possam encomendar a tempo os respetivos livros para os colocar à venda, e potenciar as sessões de autógrafos. Houve um momento macabramente divertido: na sequência do debate sobre a pecha mais óbvia do Festival deste ano (a falta de nomes sonantes nos autores convidados) Nélson Dona revelou ter assegurado três figuras fortes, que acabaram por não vir. Não revelou os motivos alegados por dois deles, mas disse que o terceiro tinha uma boa justificação: infelizmente falecera! Comentário de Mário Freitas (salvo erro): “deviam convidar autores mais novos…”. Teve graça, mas, ao mesmo tempo, tem toda a razão no sentido em que o AmadoraBD parece focar/perceber um tipo de BD envelhecido.
12- Dez minutos depois da saída do debate falei com Paulo Monteiro, Diretor do Festival de Beja. Não teve qualquer problema em me anunciar que já tinha bilhetes comprados para autores que virão em 2012 (de modo a aproveitar viagens baratas), e revelar os respetivos nomes, enquadrados na lógica assumida do Festival. Se não vierem, por qualquer motivo, não vêm, paciência. É certo que nenhum deles é Frank Miller, Bilal ou Otomo, mas é o princípio que está em causa. Faço notar (caso seja preciso) que a lógica de ligação do evento a uma autarquia é a mesma. O mesmo enquadramento pode pois levar a soluções e filosofias distintas, e, como sempre, a necessidade aguça o engenho. Repito também o que já disse várias vezes: não é justo nem útil comparar Beja à Amadora e dizer que o primeiro é “melhor”. Não é, nem pode ser.
13- Na Amadora esteve a excelente autora alternativa norte-americana de Seattle Roberta Gregory (Bitchy Bitch), a quem tive o prazer de comprar varios livros (que a própria tinha trazido). Gregory revelou ter sido contatada a menos de um mês do início do evento. Confessou estar muito feliz por ali estar, mas não perceber de todo o enquadramento do convite (“I guess they had some money to spare, ou someone quit on them and I was a last minute replacement”). Lá está.
Como diagnosticar é muito mais fácil do que propor soluções não faz sentido publicar nada disto caso não haja, pelo menos, algumas sugestões a dar. Aqui ficam.
A- Autores convidados: Divulgar (pelo menos alguns) nomes o mais cedo possível e mais eficazmente. Substituir a surpresa pela construção de expetativa, já que está visto que o corrente modelo não funciona muito bem. É certo que é prudente não o fazer em todos os casos (nos tais “grandes nomes” que podem desistir à última da hora), mas em alguns certamente que é possível. É feito em todos os Festivais do mundo, cujos programas são disponibilizados com meses de antecedência. Por vezes há falhas e ajustes, mas ninguém se ofende, é algo inevitável.
B- Temas/exposições: Idem, aspas. Pelo menos nalguns casos haver uma coordenação com as editoras de modo a que um livro lançado possa ter, desde logo, uma exposição nesse mesmo ano com presença dos autores, em vez de se esperar pelo ano seguinte, ou pela atribuição de um Prémio do Festival. Neste ano correu muito bem com o segundo volume de “Dog Mendonça e Pizzaboy”, já que havia a exposição relativa ao primeiro, mas não devia ser preciso. Sei muito bem que os livros muitas vezes atrasam nas gráficas, mas seria possível fazer isto nalguns casos.
C- Espaços: A área comercial e de autógrafos devia ser mais aberta e interligada, tirando partido do espaço disponível de modo a facilitar o binómio compra de livros-autógrafos. Por outro lado, é mesmo preciso ter de a redesenhar todos os anos? Não se podia, em acordo com os utilizadores, decidir o melhor modelo e mantê-lo?
D- Cenografia: Apesar de apreciar o (globalmente bom) trabalho cenográfico no AmadoraBD dá de facto por vezes a ideia de haver uma “ditadura” da cenografia sobre o material exposto, que acaba por o ofuscar (nalguns casos isso nem é mau…). Ter uma exposição (a central) com aposta cenográfica forte e outras mais simples não era necessariamente pior, e talvez fosse mais económico.
Não ter medo da diferença, daquilo que o Festival nunca fez ou do que não entende muito bem: Seguem-se exemplos, mas para os aproveitar é preciso algo muito importante que é difícil encontrar em eventos com a dimensão e estrutura do AmadoraBD (não é por mal, está-lhes nos genes): a capacidade de delegar tarefas em quem as possa fazer com mais eficácia do que o próprio Festival. Nalgumas exposições creio que já foi feita a experiência (por exemplo, nalgumas de investigação que tinham o claro cunho dos respetivos comissários) com resultados interessantes.
E- Fenómenos: A propósito de “Dog Mendonça e Pizzaboy”, aproveitar e promover obras com potencial de cruzarem a BD com outros mundos/leitores. A capacidade auto-promotora do autor Filipe Melo deve servir como (bom) exemplo, não com a habitual amargura lusitana de criticar quem tem sucesso.
F- Cosplay: Criar mecanismos/iniciativas que atraiam este público, que é claramente entusiasta e numeroso (e novo). Apostar melhor na BD japonesa, algo que passa, em minha opinião, muito mais por livros, jogos ou filmes (não só de animação) do que propriamente autores, já que a experiência demonstra que é duvidoso que nomes mesmo grandes do mangá venham à Amadora (não que não se deva tentar). Em contrapartida há inúmeros entusiastas nacionais, incluindo autores com capacidades interessantes que podiam ser mobilizados.
G- Cinema e géneros: Não se tem aproveitado a enorme popularidade recente de filmes de superheróis, ou até do (Indiana Jones, aka)”Tintin” de Spielberg. Em menor grau o mesmo vale para o fantástico, policial, ficção-científica, viagens, música, autobiografia, a não ser em casos pontuais de exposições isoladas dedicadas a um livro. Na BD norte-americana e francófona essas pontes são constantes. A falha não é de hoje, mas é algo que se devia trabalhar.
H- Investigação: Manter o bom trabalho de revelar investigação em banda desenhada ou correntes menos conhecidas, mas promover iniciativas um pouco mais consistentes e menos “ad hoc”, como micro-colóquios com um pouco mais de organização prévia do que o que tem sucedido. Por exemplo, o lançamento de “Mahou: Na origem da magia” (de Vidazinha e Hugo Teixeira, edições ASA) foi muito interessante, e merecia uma discussão sobre como fazer BD atrativa para jovens em Portugal. Para isso é preciso um auditório com melhores condições em termos de isolamento/acústica.
I- Prémios: procurar obter das editoras, não exemplares, mas listagens de obras editadas de modo a seleccionarem-se os livros nomeados. Publicitar esta informação com tempo, de modo a facilitar correções e a gerar uma base de dados. Discutir o número real de votantes nos Prémios. Caso esse número seja baixo é preferível que um júri rotativo nomeado pelo AmadoraBD se responsabilize publicamente pela escolha dos premiados. Ou seja: descartar o modelo dos Óscares da Academia, e adotar o de Prémios de Festivais de cinema. Já agora, deve haver a possibilidade de não se concederem prémios nalgumas categorias, caso o trabalho editorial não o justifique.