Passar por uma secção de BD e encontrar um livro de Janus distraidamente poisado junto a obras infanto-juvenis pode significar uma de duas coisas. Um acto subversivo propositado. Ou a prova que a BD continua a ser agrupada e catalogada como um todo, sem olhar a conteúdos. A editora Mmmnnnrrrg faz muito bem o seu papel em prol da primeira hipótese, com uma designação discretíssima “Obra para leitores Maduros” a funcionar como antítese da costumeira faixa castradora “BD PARA ADULTOS”, que, como se sabe, apenas serve para chamar a atenção. Apesar disso o mais provável é ser verdade a segunda alternativa. E isso só mostra alheamento. O título do mais recente livro de Janus, e o folhear distraído do seu conteúdo, não deixam lugar a dúvidas. Podem-se usar eufemismos, mas O pénis assassino é uma muito interessante BD pornográfica.
A base do argumento é simples: um homem revela-se irresistível para as mulheres que, no entanto, morrem no momento em que atingem um orgasmo, uma morte que parece o vírus Ebola acelerado. Prazer e morte desencadeados por um mesmo órgão, naquela que parece uma ideia para uma paródia pornográfica a filmes de terror, no quais de resto o sexo tende a ser sempre castigado. Uma variante (o perigo de “super-ejaculações”) foi utilizada em várias BDs humorísticas de superheróis, por exemplo The Pro (de Garth Ennis com Amanda Conner/Jimmy Palmiotti, edição da Devir). Fazia também parte do argumento original do filme Hancock, embora tenha sido removida quando Will Smith assumiu o protagonista. Também se poderiam referir obras pornográficas “clandestinas” em BD, sobretudo as americanas (como as Tijuana Bibles dos anos 1920-60), latino-americanas ou europeias.
Mas, apesar de algumas afinidades gráficas e de composição, O pénis assassino pouco tem a ver com isto, e faz uma tangente à escatolologia pura. Esta é uma reflexão paródica crua sobre desejo e culpa (extremamente católica), com toques de telenovela. É sobretudo, e contra todas as aparências, uma obra púdica. E também misógina (é inevitável citar Robert Crumb). O sexo é uma compulsão que todos sofrem; mas as mulheres morrem, deixando o protagonista muito perturbado psicologicamente e, no final, nos braços de uma mulher mais nova… É verdade que morre um homem, mas quem o mata é uma mulher, pelo “previlégio” de, por sua vez, perecer. Esta literalidade estabelece uma diferença importante com a excelente obra anterior de Janus, O Macaco Tozé; ao tornar o protagonista mais “real” O pénis assassino perde subtileza. Mantem a mesma riqueza gráfica (outra vez ecos de Crumb), com uma patine de gravura pelo pormenor do traço, particularmente notável quando interrompido por uma chuva quase seminal. Mais convincente na representação do desejo e sobretudo da culpa do que propriamente da violência, o desenho enche o cenário e o protagonista de sombras. Vincando um tom soturno que, ao contrastar com o texto, evita que as leituras mais óbvias sejam as únicas. A interacção entre representações gráficas e narrativas é aquilo que revela a boa banda desenhada. Neste caso se exatamente as mesmas palavras e planificações de O pénis assassino tivessem sido servidas por um desenho mais luminoso e aberto (Luís Louro, por exemplo) o resultado final teria sido completamente distinto. É isso que impede descartar a obra de Janus por conta do óbvio.
A bela edição da Mmmnnnrrrg realça o conteúdo com uma apresentação sóbria, mantendo uma estratégia comum na editora de usar traduções em inglês no rodapé, de modo a permitir a comercialização internacional do livro. Só se espera que ajude Janus a perturbar mais gente, em mais sítios.
O pénis assasino. Argumento e desenhos de Janus. Mmmnnnrrrg, 120 pp., 15 Euros.