37
O sal da terra
– Qual o valor do sal? – perguntava a viúva depois de ter recebido o cheque das mãos do príncipe e anunciado o destino que iria dar ao dinheiro do prémio. – O sal queima a boca, esteriliza a terra, não tem nenhum valor em si mesmo. O sal serve apenas para realçar o sabor dos alimentos. É como este cheque – dizia pegando-lhe pelas pontas e esticando o braço na direcção da plateia -, só terá serventia se for bem aplicado e der frutos.
E assim explicava ela porque iria mandar erguer a primeira escola de Lisboa para o ensino das artes e ciências e tolerância entre os povos do mundo. Palmas, palmas.
O Sol devia estar quase a pôr-se, mas a festa ainda mal começara. Bem dissera a viúva que não me preocupasse com o tempo, que seria São Martinho e nada podia correr mal. O fórum estava cheio e parecia uma autêntica tenda do deserto. Bem pensado. Tochas e candelabros pelos jardins, para acender mais tarde, os bancos de pedra cobertos com mantas que pareciam tapetes persas, chafarizes por tudo quanto era sítio e os empregados do buffet pela roupa pareciam marroquinos, mas eram de Leste. A viúva tinha dirigido bem o tempo de duração das actividades, não se podia dizer que não. Parlapié, muito pouco. O concerto era para ser rápido, evitando o choque auditivo com os mais sensíveis e menos habituados a ritmos exóticos.
Seguiam-se os comes e bebes alcohol free ao ar livre, que as tochas certamente ajudariam a transformar em substâncias e néctares divinos. A rapariga cantava e dançava e estrebuchava em cima do palco que nem uma Madonna das Arábias, e o público vá de abanar a cabeça e de bater palmas e alguns até cantarolavam. A ver se aquilo acabava. Agora que finalmente tinha recuperado a minha forma, estava desejosa de provar aquelas iguarias que tinha visto à entrada.
Quando as portas começaram a abrir-se para o jardim, a sensação que tive foi de estar no Éden. Tudo iluminado, o ar tépido, uma espécie de tanque rectangular com uns 50 metros de comprimento e palmo e meio de profundidade estendia-se diante de mim, como se eu fosse uma sereia e ele a minha passadeira e os azulejos mouriscos, as conchas. Com certeza não o teriam construído de propósito para a festa, e, no entanto, era a primeira vez que o via. Ao tanque e a bem dizer ao minarete, cujo topo se sobrepunha em cerca de 10 metros à linha dos edifícios circundantes. Parecia de ouro, aquela coroa. Bonita. E as mesas à volta daquele espelho de água? Então, era para nos sentarmos?
Estava eu nestas divagações, quando ouço:
– Olá, Nádia, como vai? – Era o presidente da Telecomunicadora.
– Que surpresa! – respondi, deveras surpreendida.
– Temos parcerias com países árabes – explicou ele – e certas obrigações para com a sociedade civil…
– Muito bem – respondi.
– Está sozinha? – perguntou. – Quer fazer-me companhia?
O ambiente estava perfumado com aromas florais e doces. Jasmim, talvez? A musica fluía suavemente entre as mesas, por cima da cabeça das pessoas, fazendo-lhes cócegas nas costas, nos pés… O pudim de tâmaras estava divino. Ao milionário é que tinha perdido de vista. Raptado pelas odaliscas da Península? Mas quem seria aquele casal acabado de chegar? A minha mãe e o embaixador? Não podia ser…
– Olha, sempre viemos – disse ela, muito risonha, ao chegar ao pé de mim. – Estava a dar na televisão, não resistimos.
– A minha mãe, o embaixador da Ucrânia, JP – disse eu, procedendo às apresentações e sem me conseguir lembrar do nome dele.
– JP?… – repetiu a minha mãe, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
– Jonas Policarpo – disse ele amavelmente, indo ao encontro da mão dela.
– Está demais, esta festa – disse o embaixador, refastelando-se numa cadeira. – E ainda bem que não há aqui bebidas alcoólicas…
– Gostam, os meninos? – disse a minha mãe, exibindo um magnífico anel de noivado.
– E Milão? – perguntei-lhe.
– Não deu em nada… – disse ela. – E agora que o conflito diplomático está resolvido, vamos mas é ficar em Lisboa.
– E que cidade melhor que Lisboa para se viver? – disse JP.
– Se calhar, vou para Madrid – disse eu.
– Não vai nada para Madrid! – respondeu ele.
Entretanto, a minha mãe e o embaixador levantaram-se, dizendo que iam cumprimentar o rabino Salomão e sua esposa, o que me deixou perplexa. Como é que ele teria conseguido arrancar a mulher de casa? Será que lhe prometera finalmente levá-la a Almeria, a pátria histórica dos seus antepassados, que ela ansiava conhecer? Será que ela viera por cautela? Para evitar que o marido se extraviasse em algum harém? Quiçá quisesse apenas fazer jus aos antigos habitantes da Espanha multiétnica, de mundividência pacifista e cosmopolita…
Ainda mais espantosa do que a inesperada aparição de Almerinda era a reconciliação da minha mãe com o embaixador. Não esperava voltar a vê-los juntos e no entanto pareciam contentes na companhia um do outro. Ninguém diria que tinham estado à beira da ruptura definitiva ainda tão recentemente.
– Damos um passeio? – perguntei a JP. – Isto é grande, vai até lá abaixo…
O ar parecia cada vez mais tépido à medida que descíamos. Não é que as mulheres tivessem aderido completamente à ideia dos trajes arábicos, mas quase todas ostentavam ouro e jóias e uma quantidade infinita de xailes e lenços de seda, cheios de pérolas, missangas, medalhinhas. Algumas usavam-nos amarrados à cintura ou caídos sobre os quadris. Outras – na cabeça, com os pendentes sobre a testa. Quanto a mim, a única jóia que tinha era o meu N da sorte e um vestido de chiffon entre o dourado e o cor de mel, que parecia areia do deserto. Esvoaçante, cingindo-me delicadamente pela cintura e descendo até aos joelhos. Os cabelos davam-me pelos aos ombros, e agora usava-os ondulados, com nuances douradas. À medida que íamos avançando o relevo começava a precipitar-se sobre a encosta, por entre oliveiras e tochas de fogo. As minhas faces deviam estar vermelhas. Ardiam. Era um fogo que vinha de dentro. Íamos caminhando suavemente em silêncio, quando de repente uma mulher grita o meu nome. Era Valentina, aparentemente felicíssima por me ver.
– Imaginas quem encontrei aqui? – disse ela, alheia à presença de JP e do homem que deixara cerca de meio metro atrás de si. – O meu querido Waed!
– Aquele? – perguntei, erguendo as sobrancelhas na direcção do príncipe.
– Sim! – respondeu ela. – Há anos que não o via, vê lá tu…
O príncipe era simpático e educado e parecia tão acessível que nem parecia um príncipe de verdade. Conhecia Valentina através dos negócios que no passado fizera com o falecido, comprara-lhe fortunas em semimanufacturados de ferro e aço, pelo que ela dizia. E agora, que estavam ambos viúvos, porque não aproveitarem o acaso e fazerem daquele encontro mais do que uma agradável coincidência? Ele pedira que ela fosse com ele para o Dubai, e ela ia.
– Então e o clube e o processo contra o Estado português? – perguntei.
– Ah! Quero lá saber disso… – desvalorizou ela, erguendo as mãos no ar e baixando-as logo de seguida para abraçar o príncipe pela cintura.
JP afinal também conhecia o milionário. Mas não percebi de onde. Seria das telecomunicações? Podiam ser outros negócios ou talvez algo relacionado com o lazer.
– Vi o seu anúncio – disse ele repentinamente. – Ia morrendo de susto.
– Mas não era de susto que era para morrer – disse eu a rir.
– Não quis fazer a novela… – disse ele. – Assim, continuo em dívida consigo.
– Não, deixe lá isso – disse eu.
– Então, vai para Madrid fazer o quê? – perguntou.
– Ainda não sei se vou – respondi, ajeitando uma mecha de cabelo que a brisa teimava em trazer-me para a cara. – Mas se for, vou fazer o mesmo que faço cá.
– E gosta do que faz? – perguntou ele, parando à minha frente, com as mãos nas algibeiras.
– Gostava era de ser dona de casa… – respondi. – mas isso não pode ser.
– Porque não? – perguntou ele, chegando-se tão perto de mim que a bainha do meu vestido seria capaz de roçar nas calças dele, se a brisa soprasse mais forte nem que fosse um milímetro.
Se os meus olhos não me enganavam, era Rute e Mariska a virem lá de baixo. Seria possível que elas não me tivessem avisado que estavam em Portugal?
– Olha, onde ela anda… – disse Mariska, apontando para mim. – Já corremos tudo à tua procura!
– Mas o que é que vocês fazem aqui? Porque é que não me avisaram que vinham? – disse eu.
– Foi tudo decidido em cima da hora – disse Rute, ao mesmo tempo que me dava um grande abraço. – Desculpa, meu anjo…
– Ainda bem que voltaste! – disse eu. – Já não aguentava mais aquela agência e agora a Másha…
– Já sei disso tudo – disse ela, segurando-me nas mãos. – Não te preocupes que na segunda retomo as rédeas do negócio!
Apresentei-as a JP. Mariska piscou-me o olho, em sinal de aprovação. Abanei a cabeça que não, que não era o que ela pensava. Ignorando o esclarecimento, Rute também fez questão de emitir o seu parecer, espetando o polegar para cima, toda divertida. Achei melhor não lhes dar luta e simplesmente mudei de assunto:
– E a tua filha, Mariska?
– Ficou no Restelo a dormir com a ama.
– Ah, ela também veio…
– Sim, agora ficamos cá a morar.
Bem que ela sempre afirmara que gostaria de morar em Portugal. E para a criança também devia ser bom. Podia apanhar sol quase durante o ano inteiro e brincar na rua o tempo que lhe apetecesse…
– E você, tem filhos? – disse, virando-me para JP, assim que elas voltaram costas.
– Sim, dois gémeos – disse ele. – Têm 10 anos.
– Eu não tenho…
– Sou divorciado – disse ele.
Caminhámos uns metros e sentámo-nos. A brisa começava a arrefecer e de repente um cheiro a castanhas assadas incorporou-se na música e veio até nós. De onde viria? Da festa não era. Alguém nas redondezas se lembrara de que era São Martinho… Arrefecia. Sem saber o que fazer às mãos, friccionei os braços. Ele despiu o casaco e colocou-o nos meus ombros, demorando-se gentilmente enquanto me aconchegava. Quando parecia que o silêncio se antecipava a todas as palavras que desejávamos dizer, ele sugeriu:
– Vamos se não ainda se constipa – E oferecendo-me a mão, ficou pacientemente à espera que eu me levantasse.
Depois chamou o motorista e mandou que viesse apanhar-nos ao portão de baixo. Que me levava a casa. Que não me preocupasse com o carro, que depois pedia a alguém que mo viesse buscar.
O carro dele era preto e espaçoso, mas sem parecer uma limusina. Ele fechou a divisória que nos separava do motorista e disse:
– A festa correu bem, não acha?
– Muito – respondi. – A Leila fez um trabalho genial e o filho também tem jeito para estas coisas.
– Não vá para Madrid – sussurrou ele, virando-se para mim, tocando com os joelhos nas minhas pernas. – Não me faça ir a Espanha à sua procura.
– Porque iria você à minha procura? – disse eu com o coração a bater de forma esquisita.
– Gosto de si – disse ele, agarrando-me na mão.
– Também não desgosto de si – respondi-lhe com um sorriso, ao mesmo tempo que o meu estômago se incendiava.
Depois o carro dele afastou-se e eu ainda me demorei dois ou três minutos na rua antes de entrar no prédio. Podia tê-lo beijado. Mas não. Assim tinha sido melhor. Que fossemos com calma que a pressa nestas coisas nunca me tinha levado a bom porto.
Dormi a sorrir. Os arabescos dançando nos meus sonhos. Na manhã seguinte eram nove horas quando me batem à porta.
Era um homem de meia-idatde, baixo e barrigudo, de boné e uniforme cinzento:
– O senhor engenheiro mandou entregar estas chaves e isto também – disse ele, entregando-me um pequeno vaso de flores.
Pus as chaves no bolso do roupão. Encostei-me à porta do lado de dentro durante uns instantes e depois fui a correr ver se ainda tinha aquele envelope. Tinha. A flor era a mesma, não era? Era, era. Okay. No nos olvidaremos, JP!
?