Duzentos e setenta dias após a explosão do McDonald’s, chega ao YoutTube um vídeo em que ninguém queria acreditar: Um rapaz, que dizia chamar-se Carlos, morar em Loures e ter 18 anos, reivindicava a autoria do atentado que levara à reclusão de Rute e do imã. O vídeo estava na Internet há vários dias sem ter despertado o interesse dos internautas, do Google ou da polícia, quando um jornalista da TVI o descobriu, lançando-o, logo a seguir, no noticiário da noite. O jovem contava em pormenor como fizera o engenho, onde arranjara o material e como lhe surgira a ideia de rebentar com um dos restaurantes da mais famosa multinacional de fast-food. Contudo, horas depois da transmissão desta notícia a polícia continuava sem se pronunciar sobre a matéria, enquanto o povo comentava, nos cafés, em casa, à entrada do prédio e em tudo o que era sítio, que a única salvação do país era, sem dúvida nenhuma, o canal de Carnaxide.
Mal tinha acabado de dar esta reportagem, eis que me liga Malasarte:
– Viu o noticiário?
– Aquilo era brincadeira, não?
– Ó Nádia, você às vezes tem com cada uma que até me deixa azoado…
Na opinião dele, a declaração do rapaz era tudo menos bluff. Mas custava-me a acreditar que o miúdo fosse assim tão burro ao ponto de ir para a Internet confessar um crime e por isso sentia-me mais inclinada a pensar que tudo aquilo não passava de uma grande gozação.
– Se ele lá tivesse posto a bomba, acha que ele dizia, não?
– Dizia, para ficar famoso.
– Oh, grande coisa, ficar famoso por um crime.
– Há pessoas capazes de tudo para aparecerem na televisão.
Custava-me a engolir a teoria dele, mas o certo é que a bomba não explodira por ordem do Espírito Santo e Rute é que não a tinha posto lá de certeza absoluta.
– Vou pôr um detective privado a investigar isto – disse ele.
– Para quê? – perguntei.
– A ver se o moço não leva sumiço – respondeu.
– Quem é que lhe daria sumiço?
– A polícia, com medo de ser ridicularizada, é claro.
Que a polícia cometesse erros, era uma realidade que eu podia aceitar e até compreender, mas que a polícia fosse capaz de sacrificar a liberdade de pessoas inocentes para encobrir as suas falhas, só para não ser exposta ao escárnio e à maledicência, era uma atrocidade na qual eu me recusava a acreditar, embora a ínfima possibilidade de que isso pudesse ser verdade me tivesse atormentado toda a noite.
Para meu descanso e grande alegria na manhã seguinte, ouvindo a TSF a caminho do trabalho, acabei por verificar que os receios de Malasarte eram completamente infundados. A PJ declarava, em conferência de imprensa a partir da sua sede de em Lisboa, existirem, de facto, fortíssimos indícios que apontavam para a veracidade do testemunho postado no YouTube, pelo que o Ministério Público havia emitido, ainda de madrugada, um mandado de captura, o qual todavia não fora possível cumprir até ao momento por se desconhecer o paradeiro do confesso criminoso.
Ao chegar à agência fui a correr ao YouTube, mas o vídeo tinha sido removido.
– Vamos aos sites russos, que encontramos de certeza! – sugeriu Másha, apoderando-se do computador e começando a digitar qualquer coisa ponto ru.
Instantes depois lá estávamos perante o vídeo do rapaz. À primeira vista, ninguém diria que aquele lingrinhas, de óculos redondos e marrafinha ao lado, fosse capaz de rebentar outra coisa que não fossem as borbulhas cheias de pus que tinha na cara, quanto mais um edifício de aço e betão, com milhares de toneladas de cimento armado em cima das costas. Mas não. Que tinha sido mesmo ele. Dois quilos de pólvora surripiados à fábrica de pirotecnia dos pais, um tubo metálico bem fechado e pouco mais fora preciso. Pronto, a perícia era um componente indispensável, mas essa tinha ele praticamente desde que viera ao mundo, pois passara a vida a ver o pai a fazer foguetes. A descontracção dele: “… depois foi só pegar na mochila e sentar-me numa pedra à espera de ver sair o último empregado, accionar o detonador e fugir dali para fora”.
– Bem, ao menos teve o bom senso de não matar ninguém – disse Másha.
Tão bonzinho que ele era, por sua causa o imã perdera a vida e Rute estava a apodrecer na prisão. Que não chateassem a família, que tinha roubado a pólvora sem ninguém dar por isso e que escusavam de o procurar, pois só voltaria a aparecer quando o crime prescrevesse, para lançar o livro que pretendia escrever nos próximos anos e que se chamaria “Táctica definitiva de combate ao Islão na Península Ibérica”.
Se o estupor do empregado do McDonald’s tivesse tanta habilidade para esmiuçar a casa de banho dos homens como tinha para a das mulheres, nem Rute nem o imã se teriam visto nos apuros que sabemos e se calhar nem tinha chegado a haver explosão nenhuma, uma vez que a bomba fora colocada precisamente dentro do tecto falso do WC, para o qual, dez minutos antes do fecho do estabelecimento, se dirigiu o malfeitor, de mochila aos ombros, todo muito selecto. Depois foi só pôr-se em cima da sanita, levantar uma placa, deixar lá o engenho e sair dali para fora como se não fosse nada com ele. Que sim, que a sua intenção fora incriminar o imã. Que sendo Abu-Nassim quem era e tendo ele a mesquita onde tinha não era difícil de prever a reacção da polícia face ao sucedido.
As revelações pareciam surpreender tudo e todos. A professora de História dizia à TVI:
– Aplicadíssimo, educado, do mais disciplinado que se possa imaginar…
– Sempre teve as melhores notas da turma. Gostava especialmente de Nietzsche, mas não se pode ver nisso o prelúdio de uma doutrina chauvinista, até porque Nietzsche continua a ser muito mal interpretado… – dizia a professora de Filosofia.
– Não se pode dizer que fosse um aluno excepcional à minha disciplina, mas sempre foi um rapaz assertivo, às vezes até engraçado… Dizia que a rainha Vitória também tinha governado a Inglaterra durante 46 anos e nunca souber inglês na perfeição… – declarava uma professora de origem britânica.
Não me admirava nada que o canalha fosse capaz de se safar, e que o seu livro viesse mesmo a ser um êxito de vendas. Afinal não é preciso grande coisa para escrever um best-seller, basta que se tenha aparecido duas ou três vezes na televisão e sabido despertar a curiosidade das pessoas, nem que seja por motivos pouco meritórios. Bandido, era o que ele era. Seria uma grande injustiça ele não ter de pagar por Rute estar onde estava há quase um ano sem telefone, sem direito a enviar ou receber correio, sem receber visitas, sem ver ninguém, a não ser Malasarte e os guardas que a vigiavam noite e dia.