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O advogado de Rute ligara-me a pedir que passasse no seu escritório por volta das oito e meia da noite, o que me pareceu pouco apropriado, mas não me senti à vontade para lhe dizer que não e por isso dez minutos antes da hora marcada lá estava eu a estacionar o carro em frente do escritório dele.
Tinha vestido umas calças de ganga à meia canela, uma T-shirt branca, com um casaquinho de malha azul -claro e, nos pés, umas chinelas que Másha me tinha trazido de Tânger. Nenhuma
maquilhagem e o cabelo apanhado com um travessão do lado direito da cabeça. Creio que tinha um ar fresco, pois antes passara por casa para tomar banho, mas não estava preparada para enfrentar outro evento naquela noite que não fosse a conversa informal que esperava ter com Malasarte. Pode-se agora imaginar a minha atrapalhação quando, ao tocar a campainha do prédio, Libério me veio abrir a porta. Não que ele nunca me tivesse visto naquelas andanças, mas como já não nos víamos há algum tempo, teria naturalmente caprichado no visual se soubesse que o ia encontrar naquela reunião.
– Olá! – disse ele, dando-me um beijo na cara, mas segurando-me pela cintura.
– Não sabia que estavas aqui – disse eu.
– Resolvi vir à própria da hora – respondeu.
– Mas passa-se alguma coisa? – perguntei.
– Nada que eu já não imaginasse – respondeu.
O advogado dizia que sabia de fonte segura que o imã, afinal, tinha sido realmente assassinado. Pediu para não lhe fazermos mais perguntas, porque ainda não tinha provas nenhumas em seu poder que corroborassem a sua suspeita, mas que ficássemos descansados que Rute não corria perigo de vida nem de qualquer outra espécie e que o homicídio do imã acabaria por nos ajudar a tirá-la da prisão.
Depois desta bombástica abertura, vieram notícias mais suaves. A Rute estava psicologicamente bem e tinha começado a escrever um livro de poesias, o que, na opinião dele, lhe atenuava o sofrimento causado pela perda da liberdade física e lhe ajudava o espírito a abstrair-se do estado de alerta permanente a que a vigilância do circuito interno de televisão sobre a sua cela obrigava.
– Achas mesmo que isso ajuda, Malasarte? – perguntou Libério, tratando-o por tu, pois o advogado era um antigo discípulo do pai dele e os dois se conheciam há vários anos.
– A privação da liberdade é uma angústia inimaginável, mas estar numa cela como a da Rute, sem contacto físico nem visual com os outros reclusos, é um castigo insuportável. É claro que qualquer actividade que lhe afaste o espírito dessa realidade só pode ter um efeito benéfico na sua saúde mental, e até física – advogou o advogado.
– Pronto, é preciso é que ela não se vá abaixo – disse Libério.
– Antes que me esqueça – continuou Malasarte. – Ela pede para lhe comprarem um dicionário de rimas e creme para as mãos, que eu depois levo-lhe.
– A minha irmã é um espectáculo – admirou-se Libério. – Nem na cadeia se deixa das vaidosices.
– O que é que um simples creme tem a ver com vaidosices? – perguntei.
– Ó rapaz, às vezes nem eu te entendo, pá – disse o advogado. – Mal da Rute se se começasse a esquecer de que é um ser humano, e sobretudo uma mulher, e deixasse de se interessar pela sua aparência, mesmo presa.
– Olha pá – respondeu Libério. -, se eu estivesse na cadeia, nem os dentes eu lavava.
– Então, não era eu que te ia defender, deixa lá! – disse Malasarte, brincando.
A mim o que me causava estranheza era a Rute ter passado a precisar de tão pouco para ser feliz. Ela, que sempre usara pelo menos três cremes diários diferentes só para as mãos e que antes não passava sem uma série de apetrechos, alguns dos quais absolutamente inúteis, precisava agora apenas de um simples dicionário de rimas e de pouco mais para melhorar a sua sobrevivência. Será que a felicidade também se podia pôr em saldo? Tudo me parecia cada vez mais relativo e as minhas certezas davam lugar a pontos de interrogação cada vez maiores.
Malasarte quis ir jantar, para comemorar as novidades.
Libério encolheu os ombros e eu fiquei à espera para ver os desenvolvimentos. Como nada acontecia, disse:
– Bem, então adeus!
– Então não vem petiscar connosco? Ó Rui, diz lá qualquer coisa, pá! – disse Malasarte.
– Vá, ‘bora ali à Sé – disse Libério, referindo-se a um restaurante pacato, com reservados insonorizados, onde se podia comer discretamente, e que ficava no Largo de Santo António, ao pé da Sé. Das poucas vezes que saía com ele para jantar fora em Lisboa era lá que costumávamos ir, refugiando-nos naqueles compartimentos isolados da sala principal, onde ninguém nos via e podíamos estar à vontade – era romântico e propício a intimidades, além de se comer bem.
O advogado aprovou imediatamente a sugestão de Libério e eu acabei por ir com eles. Mal nos sentámos à mesa, Malasarte comentou:
– Já não vinha aqui desde os tempos da Leonor Medeiros – E logo a seguir levantou-se para ir lavar as mãos.
– Quem é a Leonor Medeiros? – perguntei a Libério.
– Foi uma tipa com quem ele teve um caso. Era filha do sócio dele, quase trinta anos mais nova… O romance acabou com o pai dela a dar um tiro de caçadeira ao Malasarte.
Quando o advogado regressou à mesa, não pude deixar de pensar: “Mas que raio de rapariga seria essa que se deixara embevecer por um homem daquela idade, que nem atraente era?” Baixo, gordo e com uma calvície incipiente no alto da cabeça. Talvez fosse mais magro na altura e ainda não sofresse daquela ridícula calvície que lhe deixava a descoberto apenas o tampo da cachimónia, mas mesmo assim persistia o problema da diferença de idades. Que encantos esconderia ele atrás daquela sua carapaça tão mal acabada?
– Como é que não tens iscas, rapaz?! – disse Malasarte ao empregado de mesa que tinha vindo atender o nosso pedido.
– Acabaram-se – respondeu o empregado.
– Vai lá mas é à cozinha ver se me arranja as iscas, vá – insistiu o advogado.
– Não temos nada temperado, a sério, não ficavam boas – disse o rapaz.
– Este país vai lindo, vai – disse Malasarte, abanando a cabeça com despeito.
Acabámos por pedir uma dose de lombo de porco com ervilhas e brócolos para os três. Lindo sem dúvida nenhuma estava o deboche a que eu tinha votado o meu regime alimentar. Nunca tinha comido tanto na vida como nos últimos tempos. Se não pusesse um travão à minha gulodice, não sei aonde iria parar, para mais agora, que estava grávida.
– Tire mais, Nádia! – disse o advogado, pondo a travessa à minha frente.
– Não, não, obrigada! Tenho de ter mais cuidado, senão… – disse eu.
– Estás um bocadinho mais gordinha, estás – observou Libério, beliscando-me o abdómen.
– Proponho um brinde à Rute! Que o tormento acabe depressa, e que o seu livro seja um grande sucesso! – disse o advogado. Nós sorrimos e batemos com os nossos copos no dele.
– Não há nada como um bom vinho português – disse Malasarte, pousando o copo na mesa. Libério abanou a cabeça em sinal de concordância. Nos últimos tempos via-o beber mais do era recomendável para um atleta como ele.
– Pois é! – disse o advogado, olhando para mim e depois de ter posto o guardanapo ao peito. – Conheço este menino praticamente desde que nasceu!
– A sério? – disse eu.
– Se conheço! Nasceu no ano da fundação da Liga Portuguesa de Clubes de Futebol Profissional. O pai disse logo que tínhamos jogador. A mãe é que não gostou da ideia. Naquele tempo a bola não era o que é hoje…
– Vou deixar o futebol – disse inesperadamente Libério.
– Ó Rui, tu não me estragues o jantar, pá! – disse o advogado.
– O que é que te deu? – perguntei.
– Estou a ficar velho… – disse ele.
– Não digas parvoíces! Ainda tens muito para dar ao futebol nacional! Para mais agora que o brasileiro se pôs na alheta – disse Malasarte.
Eu bem me parecia que o facto de ele não ter sido convocado para o Euro lhe tinha esfrangalhado os nervos, mas nunca imaginara ser até àquele ponto, pois o que ele me tinha dito é que nem chegara a contar ser seleccionado, uma vez que tinha feito uma época vergonhosa e estava completamente fora de forma, o que não era de admirar, pois fartava-se de faltar aos treinos e levava uma vida desregrada.
– Nem eu tenho nada para dar ao futebol nem o futebol tem para me dar a mim – continuou Libério.
– Podes não estar a atravessar a melhor fase da tua carreira, mas daí até te achares arrumado… – disse Malasarte.
– Ainda agora no campeonato tinhas tu sozinho feito melhor figura do que aqueles badamecos todos juntos! Tens talento para dar e vender, rapaz!
– Isto só com talento não vai lá, Malasarte, e eu já não tenho pachorra para passar os dias a pensar no futebol – disse ele, e enquanto ele falava parecia que uma estrela se apagava no céu, tornando mais escuro o mundo.
Apesar de não estar nas melhores condições físicas e psicológicas, ele continuava sem dúvida nenhuma a pertencer àquela categoria raríssima de jogadores prodigiosos que levam as pessoas a levantarem o rabo do sofá e a gastarem um dinheirão num bilhete para irem ao estádio ver aquilo que, teoricamente, podiam ver na televisão. Não estava na flor da idade, mas tinha um dom especial que ainda podia ser recuperado se ele quisesse, nisso eu concordava com o advogado.
– Ó Rui, promete-me que não vais fazer nenhum disparate, pá! – pediu-lhe Malasarte antes de pegar na lista das sobremesas.
– Bem, logo se vê – disse ele. E o advogado respondeu:
– Se o Special One cá estivesse, a esta hora não estavas tu com essas conversas, não.
– Bem, logo se vê – disse ele. E o advogado respondeu:
– Se o Special One cá estivesse, a esta hora não estavas tu com essas conversas, não.