Desde que Rute foi presa que experimentei todo o tipo de emoções. Raiva, indignação, tristeza, culpa e até um certo conformismo. Mas o que nunca pensei foi que viesse a sentir o espanto que senti quando Libério, quase de madrugada, me bate à porta para me dar esta notícia.
– O imã matou-se!
– Matou-se, como? – perguntei, assustada por o ver tão aflito.
– Com polónio 210, estavam a dar na rádio – disse, passando a mão pelos cabelos e depois deu um gemido tão grande que parecia uma fera ferida e quase me partiu o coração.
– Acalma-te, lá! – pedi, fazendo-lhe uma festinha no peito, mas querendo alcançar-lhe o coração e sem conseguir perceber o seu desespero.
– A Rute está bem? – perguntei.
– O advogado diz que sim, não sei! Tenho medo que lhe aconteça alguma coisa – disse ele.
– Mas porque é que lhe havia de acontecer alguma coisa? – estranhei.
– E se a matam? Sei lá eu se o imã se matou se o mataram!
Nunca o vira tão aflito. Parecia que de repente, perante o espectro da morte e a possibilidade de nunca mais voltar a ver a irmã, o grito do sangue acordara nele uma torrente de sentimentos novos.
– Minha rica irmã! Se alguma coisa de mal lhe acontece, nem sei do que sou capaz – disse ele, lançando as mãos à cabeça.
Ia para lhe responder, mas o telefone tocou e fui atender. Era Mariska e também ela estava a par da novidade. Malasarte, que tinha instruções rigorosíssimas no sentido de a informar imediatamente dos rebates relacionados com o caso, já lhe tinha ligado, apesar de ser sábado e de o dia mal ter começado.
Perante a preocupação de Libério face à segurança da irmã, ela disse:
– Ele que não se preocupe, que ela foi colocada numa cela vigiada por câmaras vinte e quatro horas por dia.
– Mas porquê? Achas que ela era capaz de se suicidar?
– Não, mas assim, não há desculpas, não podem deixar que ninguém lhe faça mal…
A versão oficial da morte do imã era que ele se tinha suicidado com sete gramas de cianureto que guardara na concavidade de um anel de platina que usava no dedo mínimo da mão direita. Por incrível que se afigure, parece que tinha conseguido esconder a jóia dos guardas prisionais durante os noventa e sete dias que estivera em preventiva.
– Ninguém vai fazer mal à Rute, o advogado tem tudo sob controlo – disse eu na tentativa de acalmar Libério e depois de ter acabado a conversa com Mariska.
– Achas mesmo? – perguntou, mais calmo.
– Tenho a certeza – garanti. – Queres descansar?
– Vou-me espraiar um bocadinho na tua cama – disse, indo para o meu quarto.
Fiz um chá de valeriana, que é um autêntico elixir para os nervos, dores de cabeça e tensão muscular e levei-lho. Ele estava sentado, com as costas apoiadas na cabeceira da cama e as pernas estendidas sobre o colchão. Mal me viu entrar no quarto, fez sinal que não queria beber nada, franzindo o nariz e enrugando o rosto, mas eu insisti:
– Bebe, que ficas melhor! – Depois tirei-lhe os sapatos dos pés e quando ia a sair do quarto, ele perguntou:
– Vais trabalhar hoje?
– Não, nunca trabalhamos aos sábados.
– Então, fica aqui comigo! – disse, dando duas palmadinhas no colchão.
Não era que não me apetecesse acostar-me ao lado dele, mas achei melhor conter-me para evitar o perigo de uma recaída. Fui à cozinha e resolvi também tomar um chá para ver se sossegava. Mas o telefone tocou de novo. Era o padre Gedeão. Já sabia do sucedido e queria certificar-se de que Rute estava bem.
– Pelo que sei, está, padre, obrigada.
– Mas que grande trapalhada – disse ele. – Coitada da viúva, deve estar destroçada…
– Acha que lhe deva dar as condolências? – perguntei.
– E porque não?
– É que não a conheço assim tão bem….
– Dá-lhe pois! Mas, olha, de acordo com os preceitos islâmicos, os pêsames devem ser apresentados durante os primeiros três dias a seguir à morte da pessoa, depois disso deixam de fazer sentido. Existe uma fórmula própria para as condolências. Passa no meu gabinete, que eu dou-ta.
O padre parecia deveras abatido com a morte do imã e genuinamente solidário com a viúva, o que até se compreendia. Por muitos desacatos que ele e o defunto tivessem tido, teriam com certeza as afinidades próprias dos homens religiosos, ainda por cima nascidos e criados no mesmo país e certamente emigrados por motivos semelhantes. Cada um teria visto Deus à sua maneira, mas seguramente ambos terão ansiado pela prosperidade das suas congregações e pela ventura do ser humano em geral.
– Alguma novidade? – perguntou Libério, indo ter comigo à cozinha.
– Era o padre Gedeão, para saber da Rute – respondi.
Permanecemos em silêncio durante alguns instantes e depois, com receio que ele dissesse ou fizesse algum coisa que me puxasse de novo para os seus braços, eu disse:
– Se calhar vou ao funeral…
– Ao funeral não vais de certeza, que eles não deixam as mulheres irem aos enterros.
– Tens a certeza?
– Absoluta. No Islão, as mulheres não vão a funerais.
Era a primeira vez que ouvia tal coisa. Seria mesmo que as mulheres muçulmanas não tinham o direito de enterrar os seus mortos? Parecia cruel demais para ser verdade, mas talvez houvesse uma razão desconhecida que explicasse aquela restrição, que à primeira vista não tinha lógica nenhuma. Ligámos a televisão. Os jornalistas continuavam a afirmar que o imã se suicidara com polónio 210. Para mim, entre o polónio e o cianureto a diferença não era nenhuma, mas assim se via a falta de rigor com que hoje em dia se abordavam as notícias.
Na realidade, apesar de serem ambos venenos letais, havia uma disparidade colossal entre um e outro, conforme me explicara mais tarde o padre Gedeão. Enquanto o primeiro destruía lentamente as células do organismo, provocando uma morte compassada, que podia levar a vítima a agonizar durante dias a fio, o segundo matava em poucos minutos. Isto dissera-me ele quando ainda nessa tarde passei pelo Patriarcado com a desculpa de ir buscar a cábula para as condolências. Na verdade, gostava de o visitar. Talvez alimentasse secretamente a esperança de que ele me fizesse acreditar no Paraíso, me ensinasse os caminhos da fé e das virtudes. Gostava do gabinete dele e até do cheiro a mofo – reportando para um mundo prístino, inacessível, secreto. Não havia o menor indício de luxo naquele espaço. Os móveis eram poucos e as cadeiras daquelas que nos obrigam a estar de costas direitas. Nas paredes apenas a imagem de um homem calvo, de barbas enormes, contemplando o céu de cajado nas mãos. Era São Bento, padroeiro da Europa, missionário da paz e formador da unidade cristã.
– Se tivesse vivido nos dias de hoje, nesta Europa cheia de gente de toda a raça, o que este homem não teria já feito para promover o ecumenismo! – disse Gedeão, reparando que eu estava a contemplar o quadro.
Apesar do ambiente austero e modesto, havia naquele gabinete uma pequena excentricidade que
me surpreendera todas as vezes que o tinha visitado. Numa mesinha ao lado da sua secretária havia sempre uma jarra de gardénias brancas, que se opunham vigorosamente ao ar sombrio e bafiento do quarto, e naquela tarde, lá estavam elas, como era da praxe.
– Que flores tão bonitas que você sempre aqui tem!
– São gardénias, gostam de luz e terras amenas – disse ele.
– Então duram pouco aqui no seu escritório, não? – perguntei.
– São umas lutadoras, duram que se fartam, e depois têm as bênçãos dos meus santos, não te esqueças – disse, passando-me uma folha de papel para a mão. – São os votos de condolências para a pobrezita.
Peguei na folha e li em voz alta:
– Possa Alá dar-lhe recompensa abundante e grande consolo e concessão de perdão para o imã… – Fiz uma pausa e disse: – Alá? Mas eu não sou muçulmana…
– Que interessa isso? – retorquiu. – Os muçulmanos não têm o exclusivo do Alá…
– Então…?
– Então, Alá não significa apenas Deus? – disse ele.
– Pensava que era o nome de uma divindade…
– Olha, sugiro que passes pela casa da viúva depois de amanhã – retomou Gedeão. – Deixa que os mais próximos a consolem primeiro.
A seguir levantou-se com a desculpa de ter de se despachar para ir ao enterro do imã, o que me deixou deveras surpreendida, pois nem sequer tinha passado um dia sobre a sua morte.
– Mas ele morreu esta madrugada – disse eu.
– Os muçulmanos e os judeus enterram os mortos depressa, para que vão ao encontro do
Criador o mais rápido possível – esclareceu ele.
– É verdade que as mulheres não podem ir aos enterros? – quis confirmar.
– As mulheres não vão para evitar gritarias e lamentações, que são contra os mandamentos do profeta e só atrasariam o processo – disse ele.
– Que estranho… – comentei.
– A morte é sempre penosa e as mulheres, seres mais delicados, têm maior dificuldade em lidar com ela, em conformarem-se com a perda que ela implica. Por isso, no Islão, elas despedem-se dos defuntos numa oração especial em casa ou na mesquita e assim acabam por ser poupadas à derradeira dor de ver o corpo dos seus entes queridos desaparecer debaixo da terra – explicou o padre, aceitando com naturalidade aqueles preceitos.
Quando, no terceiro dia de luto, fui visitar a viúva, para lhe expressar o meu voto de condolências, ela, levantando ligeiramente a cabeça, apertou-me a mão e disse:
– Que Alá te proteja e tenha piedade de ti também, filha.
Ao ouvi-la proferir estas palavras, estremeci. Por que razão haveria o Deus dela de me agraciar? Seria aquilo um mau presságio? Jararaca não parecia. Bruxa também não. Tinha um ar jovial, os olhos rasgados para as têmporas e sobrancelhas bem delineadas. O olhar era vivaz e as maçãs do rosto ligeiramente rosadas. Quer dizer, antes da morte do marido era assim que ela era, porque agora parecia que os olhos se lhe tinham afundado na cara, dando ao nariz uma dimensão assustadora. Estava pálida e sem vida, sentada silenciosamente ao canto do sofá, numa sala enorme, cheia de sofás e cadeirões. Tanto ela como as outras mulheres ali presentes – parentes e amigas – estavam completamente vestidas de branco, pareciam fantasmas. Pela primeira vez vi-a com a cabeça completamente tapada pelo véu. O pano cobria-lhe por inteiro a testa, descendo a partir da fonte direita até ao queixo e subindo depois novamente pela cara acima até à têmpora esquerda, onde era apanhado com um minúsculo pregador, bem bonito por sinal. Fazia-me impressão vê-la assim, parecia que não tinha pescoço e que o sobrolho se tinha evaporado debaixo daquele véu. Estava eu nestes reparos quando uma mulher, emergindo com um tabuleiro cheio de pequenas tacinhas começou a oferecer chá a toda a gente, fazendo-me sinal para que me sentasse. A viúva voltou a pegar-me na mão e pousando-a no seu colo disse:
– O meu marido nunca se mataria, pois o suicídio é contra os mandamentos de Maomé e ele nunca cometeria tal pecado, compreendes?
– Pois… – disse eu.
– Deixou um bilhete que dizia: “Não há outro Deus senão Alá…” – contou ela, e eu permaneci calada com receio de dizer alguma blasfémia ou alguma coisa que pudesse ser interpretada como tal, pois sentia-me como se tivesse aterrado noutro planeta.
– Um suicida nunca escreveria tais palavras – disse ela.
– Pois… – respondi.
– E sabes porque não? – perguntou, olhando-me nos olhos. – Porque foram as palavras do próprio profeta na hora da agonia. São palavras sagradas e cheias de significado. Nenhum homem de fé ousaria repeti-las e a seguir cometer suicídio.
– Mas o anel… – disse eu.
– O anel, é verdade que o tinha, mas o que ele guardava lá dentro não era veneno, mas sim um pequeno diamante que a minha mãe lhe oferecera no dia do nosso casamento, como símbolo do meu precioso valor e na esperança de que ele me tratasse sempre como se eu fosse uma jóia preciosa, com esmero e carinho, que foi exactamente o que ele fez durante todos estes anos.
Fui para casa mais agoniada do que nunca. Será que o imã tinha realmente sido assassinado? Será que o escrito que deixara era uma espécie de código que punha a nu o assassínio de que alegadamente fora vítima? Será que por detrás daquela despropositada explosão se escondia algo mais terrível do que um simples e terrível engano? Uma conspiração, sei lá. Será que toda aquela brincadeira tinha contornos mais sérios do que eu tinha suposto? As perguntas eram mais que muitas, mas ter Libério ao pé de mim foi o único desejo que verdadeiramente me acompanhou durante o resto da noite.