“Visite o túmulo de Eleanor Rigby. Conheça Strawberry Fields, Penny Lane, as casas onde cresceram Lennon, McCartney, Starr e Harrison”. Em Liverpool há um mapa da cidade e há um mapa dos Beatles, com todos os lugares que eles ainda habitam sob a forma de fantasmas beneméritos. E o visitante, enfeitiçado por canções que ouve desde criança, responde ao apelo dos vendedores de percursos: visita o túmulo de Eleanor Rigby, conhece Strawberry Fields, Penny Lane e as casas que guardam os sonhos de grandeza de quatro rapazes da classe operária.
Em Maio de 2008, sonhei que visitava Liverpool, conduzida por George Harrison. Foi a antecâmara de uma viagem. Na manhã que se seguiu à noite desse sonho confirmei que a cidade do Norte de Inglaterra seria, nesse mesmo Verão, capital europeia da cultura e marquei a partida. Não respondi a todos os apelos dos vendedores de percursos que me apareceram ao caminho, mas encontrei Eleanor Rigby: apanhava bagos de arroz numa igreja onde se celebrara um casamento. Que não o seu. Que nunca seria o seu.
“Quer ouvir-me cantar, Miss?” À porta de um self-service, o rapaz do talho, o saco da carne às costas, detém-se junto de mim, na esplanada, . “Um dia vai ouvir-me cantar num musical em Londres. Lembre-se do meu nome: Bill Rainbow. Extraordinário nome para alguém que, no segredo do seu quarto, sonha com Cats e The King and I, um palco imenso, os néons do West End, com todas as cores do arco-íris do nome dele. Tem a mesma idade com que Eleanor Rigby começava a desesperar de encontrar noivo: a idade do agora ou nunca. “Não pude fazer carreira. Tenho de tomar conta da minha mãe acamada.”
Sobre Liverpool pairam os fantasmas de destinos que ficaram por cumprir. Não é possível crescer neste ponto da costa leste de Inglaterra, com os olhos na Irlanda, e não aspirar à glória. Há os que querem tornar-se lendas do futebol no Liverpool F.C, os que sonham com o estrelato da música pop e os que, pura e simplesmente, evocam a memória dos transatlânticos que daqui zarparam, em grande estilo, uma semana de música e romance até Nova Iorque. Ninguém esquece que, no fundo do Atlântico, está o mais belo navio de todos os tempos e, com ele, o nome desta cidade. Titanic, Liverpool.
A corte está longe. Nos pubs não há turistas, apenas velhos operários que se endomingam para a Guiness do final da tarde. Bem tirada, a espuma cortada à navalha em balcões encimados por grandes espelhos à moda de Veneza. Um dia terão reflectido um miúdo chamado Paul McCartney que vinha chamar o pai para jantar. Ou os empregados da White Star Line, orgulhosos dos gigantes flutuantes que viam erguer-se, nas docas, sob as suas mãos. Já não há Beatles, já não navegam transatlânticos, a reputação industrial da cidade é mais arqueologia do que economia. Mas nesta nostalgia há uma justiça poética que a torna grandiosa. Em certos lugares, sob determinada luz, é possível sentir a energia dos que sonharam com a dilatação dos horizontes. Uns partiram a conquistar o mundo. Outros ficaram, inebriados com a beleza do sonho, a apanhar arroz de um casamento que não era o seu. Mas os primeiros cantaram a derrota dos segundos e tornaram-na esplendorosa.