FOTO: Jean Painlevé, Geneviève Hamon e Vera Marmelo
É a maior exposição apresentada em Portugal, dedicada à obra de Jean Painlevé, documentarista pioneiro e fotógrafo da vida animal, em particular da fauna subaquática. Ao longo de sete salas e uma ampla seleção de fotografias e vídeos, curada pela plataforma artística Ampersand, será possível mergulhar mais a fundo na mente de um criativo que esteve inserido em diversos movimentos de vanguarda da primeira metade do século XX. Até 23 de março, na Culturgest
Uma comunidade de pequenos moluscos rasteja na lama. Os corpos, moles e semi-transparentes, competem em viscosidade com o lodo onde se arrastam.
De repente, desprendem-se do solo. A pele do corpo distende-se e toma a forma de uma saia rodada. Um a um, lançam-se numa dança de movimentos baléticos, para cima e para baixo, ao ritmo da corrente.
A voz que até então descrevia o comportamento dos animais é substituída por uma composição musical de Pierre Jansen, cuja sonoridade poderia ser descrita como uma valsa futurística.
Os animais saltitantes transformam-se em formas brancas estilizadas que se movem sobre fundos saturados de violeta, cor-de-rosa e cor-de-laranja. O hipnotizante vídeo deixa-nos na dúvida se estamos perante um documentário científico, uma composição surrealista ou algo a meio caminho entre ambos.
A obra, que vive no limbo entre a ciência e a ficção, chama-se Acera ou O Baile das Bruxas, e é uma das cerca de 200 curtas-metragens realizadas, entre 1920 e 1980, pelo cientista, artista de vanguarda, fotógrafo, produtor e crítico de cinema francês Jean Painlevé.
Até 23 de março, a sua obra será celebrada na Culturgest, através de uma mostra que “não é uma retrospetiva clássica”, como sublinham os curadores Alice Dusapin, Martin Laborde e Baptiste Pinteaux.
A exposição apresenta-se antes como uma homenagem ao trabalho de um homem que, mais do que cientista ou artista, foi um ilusionista capaz de fazer milhares de pessoas sonhar, através do registo dos seus momentos de contemplação do mundo natural.
Ao longo de sete salas, o público é convidado a descobrir não só uma seleção de filmes raros de Jean Painlevé e Geneviève Hamon, sua companheira, e colaboradora mais próxima, desde que se conheceram em 1924, até à sua morte, como imagens da rodagem dos mesmos e impressões fotográficas de bocas de peixe, asas de morcego, olhos e caudas de camarões ou tenazes de caranguejos.
A abrir a exposição, como não podia deixar de ser, L’Hippocampe [O Cavalo-Marinho], a mais famosa curta-metragem da série que o artista realizou sobre seres marinhos, pescados nas costas da Bretanha e gravados no aquário que tinha com Geneviève Hamon, na propriedade dos Hamon em Port Blanc.
O vídeo de 15 minutos mostra um cavalo-marinho a dar à luz, e foi um sucesso tal, que o animal acabaria por transformar-se no emblema de Jean Painlevé, declinando-se em joias, estofos e papéis de parede, três dos quais recriados e utilizados nas paredes da exposição.
Para entender a dimensão do sucesso inesperado, mas ribombante, de l’Hippocampe, poderíamos defini-lo como um antepassado do vencedor do Óscar para melhor documentário, em 2021, A Sabedoria do Polvo.
A partir da observação obsessiva do Mundo natural, Painlevé identificou ritmos, sequências, movimentos e comportamentos que transformou na matéria plástica da sua arte
Nas salas seguintes, outros filmes, que retratam, por exemplo, o movimento de um polvo, uma coreografia de dança clássica, a operação a um cão ou a luta pela sobrevivência de insetos e crustáceos que partilham as águas do mesmo charco, mostram como, a partir da observação obsessiva do Mundo natural, Painlevé identificou ritmos, sequências, movimentos e comportamentos que transformou na matéria plástica da sua arte.
Na fotografia de uma tenaz de caranguejo deixa a sugestão de uma criatura monstruosa, nos rituais predatórios de um ecossistema intui uma dança quase cómica, ao ritmo de música jazz, e em microscópicos cristais líquidos encontra os padrões perfeitos para acompanhar uma obra de música eletrónica.
É a visão do mundo de um cientista que, pela capacidade que teve de se entregar ao espanto, acabou por renascer artista, vendo e dando (sempre) a ver novas todas as coisas.