A beleza das palavras feias dói em lugares que não sabíamos ter. Tal como o tipo de poema que Ana Hatherley considerava ser bom, “não te aperta a mão, aperta-te a garganta”. E de garganta apertada será porventura a única forma sincera de nos atirarmos de cabeça à vida.
“Sibarita”, “Afã”, “Modorra”, “Facécia”, “O enxofre oloroso”. Palavras feias, densas, oleosas, repugnantes, quase caídas em desuso. Palavras que nos apertam a garganta enquanto dão nome a quatro das 16 obras da série Narcissus, apresentada em Beco das Flores, Canedo do Mato, a mais recente exposição de José Loureiro (JL), patente na Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, até 11 de janeiro de 2025.
Na folha de sala, que sabe a manifesto modernista e foi escrita pelo próprio artista, fala-se, entre outras coisas, do “elucidar de crianças, adultos e velhos — em folhas A4 impressas depositadas em recipientes de plástico — sempre que entram em salas brancas já de si perfeitamente iluminadas”.
Mordaz e carregado de sentido de humor, o texto resume a atual tragicomédia dos sabichões e dos salamaleques desnecessários que nos afastam daquilo que é mais cru, mais duro, mas mais verdadeiro. A relação pura e despretensiosa entre cada um e a obra de arte, entre cada um e a própria vida.
“Claro que o texto espelha as pinturas e vice-versa, mas o importante são as obras e o silêncio, estar absolutamente calado a olhar para elas, e não estar a ler tabelas ou seja o que for”, defende o artista.
As mãos frenéticas, as mesmas com que pinta todos os dias, “num horário quase fabril”, gesticulam enquanto confessa não pensar nas considerações que o público tecerá sobre a sua obra.
“A pintura não funciona assim. A minha relação com a pintura é selvagem, intensa e descontrolada, porque os meios que se usam para pintar são, de certa forma, indomáveis”.
Pode-se assim imaginar de onde vêm as figuras pintadas a óleo que se contorcem dentro das telas expostas nas paredes da galeria, como se procurassem a posição mais cómoda para conversar connosco, pôr-nos em causa, ou simplesmente largar uma valente gargalhada.
Apesar de serem talvez o conjunto mais figurativo da sua obra, permanecem fiéis à linguagem plástica que o artista costuma utilizar.
São pintadas a óleo, viscosas, enigmáticas, irónicas. E, apesar de agora terem cabeça, tronco e membros, possuem, à semelhança de obras passadas, grelhas, linhas e tramas, que JL transforma em padrões e formas, mais conspurcados pela vida do que pela matemática.
Começaram a aparecer em Croque-Couleur, exposição que realizou este ano em Dunquerque. “Não mudaram muito, mas também não diria que evoluíram, porque na arte não há evolução. Estão diferentes, talvez mais desenvoltas, surgem na horizontal, fazendo lembrar quase odaliscas”, explica o artista. Em suma, “estão mais lascivas”.
O som arrastado da palavra rende a ideia. É quase possível acreditar que Sibarita, à entrada da galeria, escavou a sua entrada no Mundo precisamente através de tal som. Feita de óleo,“tóxico, imponderável, difícil de dominar”, ainda a fermentar, a figura rasteja pela tela, explorando-a com as mãos, cravando-lhe as unhas, cravando-nos as unhas.
Unhas essas que, curiosamente, foram uma surpresa do processo criativo.“Quando acabei estas pinturas, reparei que todas as mãos tinham unhas e eu nem estava ciente disso”.
Firmemente convicto de que “com coisas pré-determinadas só se fazem pinturas ou arte má”, JL aprendeu a amar estes “rebentos” inesperados. “É como se a cabeça, o tronco e os membros desaguassem em unhas vermelhas, da mesma forma que o Mundo desagua no Beco das Flores”.
“As coisas feias são as mais interessantes”
Esse Beco das Flores, que dá título à exposição, foi encontrá-lo em Canedo do Mato, uma aldeia perto de Mangualde, cidade que o viu nascer em 1961. O título é indireto, mas, como sublinha o artista, “as coisas indiretas dizem muita coisa”.
“Quando eu era criança, a minha mãe dizia ao meu pai: ‘João, nunca nos levas a lado nenhum’. E ele respondia: ‘Ainda um dia vos hei de levar a Canedo do Mato’. Para ele, era o fim do Mundo. Que pode ser em qualquer lado – em Carcavelos ou na Amadora – mas aqui era uma pequena aldeola onde todas as estradas acabam”.
Quis o destino que tal fim de Mundo fosse também “o lugar na Terra onde se esconde o mais amplo mar de narcisos em flor”.
Sob a terra encharcada desse beco perdido, conseguimos imaginar, agora mesmo, centenas de bolbos que latejam, prontos a furar a terra com a pujança daqueles que precisam de chegar depressa à vida. Primeiro o caule, depois as folhas, por fim as flores.
A mesma pujança com que as 16 figuras da série Narcissus parecem contorcer-se e brotar das paredes, empurrando os limites das telas para expandir o espaço originalmente concedido a cada uma. Primeiro o tronco, depois os braços e as mãos, por fim as unhas.
“Começo cada figura pelo tronco e pela roupa, com aqueles padrões que eu adoro fazer. Os braços e as pernas são uma extensão do tronco, as mãos são uma extensão dos braços e das pernas e as unhas são os pontos finais dos dedos”.
Fez alguns desenhos a lápis “para ter uma espécie de orientação”, mas, a partir daí, “a fabricação da pintura é imprevista, há surpresas atrás de surpresas e tem de se saber lidar com o que vai aparecendo”.
Neste caso, além de pontos finais nos dedos, o artista descobriu, num beco da Beira Baixa, o ponto final no Mundo.
Nesse lugar onde as estradas todas acabam, e, no entanto, nascem centenas de flores, torna-se mais fácil perceber por que é que JL acredita que “as coisas feias são as mais interessantes”. Talvez por serem aquelas que dispensam adornos, sobretudo sob a forma de adjetivos.
Camilo Castelo Branco dizia que “a felicidade é parecida com a liberdade, porque toda a gente fala nela e ninguém a goza”. Diga-se nada, então. Olhem-se as obras em silêncio sem regurgitar um jorro de palavras desnecessário. Goze-se o momento.
Depois, a arder por dentro com tudo o que sentimos, entreguemo-nos à vida, deixando que esta nos aperte a garganta. Nunca a mão.