Arquiteto, curador e crítico de arte, o galego Carlos Quintáns Eiras foi a personalidade escolhida para organizar Siza, exposição retrospetiva da obra do arquiteto Álvaro Siza, patente até 26 de agosto na Fundação Calouste Gulbenkian.
O convite para aquela que José António Bandeirinha define, neste número do JL (ver página 8), como uma “mostra que, assumindo a sua responsabilidade, persegue a corajosa missão de oferecer a Lisboa uma visão, tão abrangente quanto possível, da vastíssima obra do arquiteto nortenho”, surgiu há cerca de um ano.
Determinante no processo de decisão, salienta Carlos Quintáns Eiras, terá sido o Leão de Ouro para a melhor participação nacional na 15.ª edição da Bienal de Arquitetura de Veneza, que arrecadou em 2016, com a exposição Unfinished [Inacabado].
Entre maio e dezembro de 2023, Quintáns e Zaida García-Requejo, curadora assistente da mostra, mergulharam em centenas de milhares de documentos, espalhados um pouco por todo o Mundo, na tentativa hercúlea de apresentar, da forma mais fiel e completa, o retrato do arquiteto e do homem por trás deles. À pesquisa, juntaram-se trocas de ideias com o próprio arquiteto Álvaro Siza Vieira, essenciais para a estrutura final que a exposição acabou por tomar.
Do seu próprio passado, Quintáns Eiras traz ainda uma carreira pautada por aquilo que define como “momentos de coincidência” com o percurso de Siza. Basta pensar que a escolha de se tornar professor de construção, cargo que ocupa atualmente na Escola de Arquitetura da Corunha, foi tomada após, numa conversa com o seu mentor, ter chegado à conclusão ser esta a área por lecionada pelo arquiteto Siza.
Os exemplos não ficam por aqui. “O primeiro desenho técnico que fiz na escola de arquitetura foi o do Banco Pinto & Sotto Mayor de Oliveira de Azeméis e, depois, a primeira revista onde trabalhei foi a Obradoiro, na qual publicamos alguns dos projetos que, naquele momento, o Siza estava a fazer na Galiza”, recorda.
Exatamente 40 anos e um mês após ter conseguido comprar, “com o próprio dinheiro”, a sua primeira publicação de Siza, Carlos Quintáns Eiras conversou com o JL e revelou de que forma, juntamente com Zaida García-Requejo, procuraram desenhar “um atlas” representativo da vida e obra de um arquiteto e de um homem que, há anos, admira profundamente.
A obra de Siza já foi apresentada numerosas vezes ao público. Neste contexto, de que forma se consegue fazer algo que nunca tenha sido feito?
Como a partir de certa altura o arquivo do Siza começou a estar divido entre o Canadian Centre for Architecture, a Fundação Serralves, a Fundação Calouste Gulbenkian, o centro britânico Drawing Matter, o MoMa de Nova Iorque e o Centro Georges Pompidou, as exposições anteriores a esta, à exceção de In/disciplina [patente em Serralves, em 2020], não se baseavam na totalidade dos arquivos. A primeira coisa que dissemos, mal começamos a pensar esta exposição, foi que queríamos conhecer bem todos os arquivos, analisar e investigar tudo o que lá havia.
Isso equivale a uma quantidade vastíssima de documentos…
Se considerarmos como um documento cada folha que se pode digitalizar, andamos em torno de meio milhão.
Analisaram-nos a todos?
Não. Acreditamos ter consultado cerca de 200 mil. Tendo em conta que em dezembro já tínhamos quase todos analisados, equivale a qualquer coisa como dois mil documentos por dia.
À medida que iam investigando, descobriram algumas coisas de que não estivessem à espera?
Muitas. Mas o que mais gostamos foi descobrir projetos e formas de desenho que não eram conhecidos. Para uma obra como a do Siza, que já está tão publicada, descobrir coisas que passaram despercebidas a tanta gente é, logicamente, um motivo de alegria.
Qual o maior desafio de ‘retratar’, em contexto de exposição, uma obra tão rica e tão densa?
Talvez o pensamento constante de que há documentos que ficariam muito bem na exposição, que sabemos que existem, mas que não conseguimos encontrar ou que não podemos mostrar. Por exemplo, uma boa parte da estrutura da exposição está feita a partir dos cadernos escolares típicos portugueses, usados pelo Siza.
Desses cadernos, 560 estão documentados, cerca de 200 podem ser consultados, mas sabemos que há muitos mais. Porém, como têm coisas privadas ou consideradas pessoais pelo arquiteto, só ele e as pessoas que lhe são muito próximas é que têm acesso a esses cadernos.
Relativamente aos cadernos, além dos 30 originais que escolheram expor, os visitantes podem ainda folhear a totalidade do conteúdo de 12 fac-símiles. Como é que Álvaro Siza recebeu essa ideia?
Recebeu-a muito bem, até porque alguns dos fac-símiles já tinham sido expostos noutras ocasiões. Fizemo-lo de novo, desta forma, para que parecessem mais reais, dando às pessoas a sensação de estarem a tocar nos cadernos verdadeiros. Depois, ele pensava que seria muito bonito poder reproduzir por inteiro e vender pelo menos um dos cadernos, por exemplo o do Perú ou o de Itália. O Siza gosta muito de partilhar estes cadernos em que desenha e, sobretudo, dizemos nós, pensa.
Porquê a decisão de mostrar nesta exposição um lado mais íntimo de Siza?
Sem isso teríamos apenas uma leitura parcial de quem ele é. Separar o arquiteto da pessoa é muito difícil, sobretudo neste caso, porque o Siza está a desenhar todo o dia. Enquanto come, fala, fuma, bebe. Há uma continuidade o tempo todo e nós achámos que era importante mostrar isso.
Para as pessoas podem parecer temas menores, mas, por exemplo, quando o Siza desenha um corpo despido, o que está a fazer é desenhar curvas, logo, quando desenha um edifício com curvas é porque antes já esteve a desenhar essas curvas, ainda que num corpo, numa cara ou noutra coisa.
No decorrer das reuniões que o Carlos e a Zaida foram tendo com ele, alguma vez sentiram que existiam determinadas coisas, inclusive deste domínio mais íntimo, que quisesse mostrar?
Sim. No andar inferior da exposição há uma parte emocional, relacionada com a gente que lhe está próxima, com desenhos escolhidos por ele, um quadro da sua mulher, Maria Antónia, que fez muita questão de incluir, bem como peças de arte africana e de outros lugares, que vai colecionando. Sobretudo nesta área, relacionada com a família e com os amigos, teve de haver um acompanhamento especial, porque o Siza aprendeu com essas pessoas.
E a estrutura geral da exposição também foi discutida com ele?
Foi, e muito. Por exemplo, o facto de a parte principal estar organizada através de 30 verbos, cada um relacionado com três projetos, é algo que não acontece por acaso, mas sim porque decidimos ter 90 projetos, o mesmo número de anos de vida do Siza. As outras dimensões também foram feitas de acordo com a sua visão, como o tema do mobiliário, em que nos deixou uma boa parte da coleção, ou a decisão de separar a parte das viagens.
Na inauguração da exposição disse que Siza acredita profundamente em transformar o país e imagina sempre um futuro melhor. De que forma é que esta faceta do arquiteto é mostrada na exposição?
Em primeiro lugar, no catálogo, através de um texto sobre o “Siza político”. Na exposição está presente, entre outros projetos, nas casas do Bairro de São Victor, fundamentais na sua obra e um exemplo de como se pode melhorar realmente um país. Aqui falamos de Portugal, mas podemos falar de outros países, já que tentou ajudar também na Holanda, Alemanha e Itália. Há mesmo muitos projetos seus que são para melhorar a forma de viver das pessoas.
Dos 90 projetos escolhidos para integrarem a exposição, alguns deles nunca foram construídos. Qual a importância deste trabalho inacabado na carreira de um arquiteto e, sobretudo, qual a sua importância na obra de Siza?
Bem, isso acontece-nos a todos. No caso do Siza, ele é muito consciente de tudo o que está por fazer. É tal a intensidade que põe em cada projeto que cada um que não está feito é para ele um verdadeiro problema. Há muitos projetos importantes, como é o caso da cúpula de Évora, que agora se fala em fazer, que não foram concretizados ainda e o Siza tende a admirá-los mais.
Em cada conversa vemos que ele tende a falar das coisas que ainda pode vir a fazer. Nós queríamos por um lado mostrar isso, até até porque é algo muito significativo, e por outro lado desconstruir a ideia de que em Portugal há já muitos edifícios feitos pelo Siza. Acreditamos que, além de não serem suficientes, alguns são peças muito importantes e encontram-se ‘desfeitos’, deveriam ser reabilitados.
Pessoalmente, o que é que admira mais na obra de Siza?
Ao contrário da arte que pode ser colocada num museu, a arquitetura é uma atividade que não pode ser separada do contexto onde se encontra. Encontra-se num lugar específico e, em princípio, tem de melhorar o que há ali. Admiro a capacidade que o Siza tem de retirar, com muita naturalidade, as leituras mais positivas daquilo que existe num sítio. Quase como se determinado espaço estivesse à espera da sua chegada há muito tempo, como se estivesse tudo suspenso à espera da sua obra.
À data da inauguração, Siza ainda não tinha visto a exposição. Agora já a visitou, e se sim o que achou?
Ainda não visitou, mas pediu à irmã para fotografar tudo e sabemos que gostou muitíssimo. Disse que o trabalho era imenso, que esta era a exposição mais global de todas as que já se fizeram sobre ele e que, apesar de não saber o quão importante isso pudesse ser para as outras pessoas, para si era muito importante.