O seu lema era “museu-mundo”, quando Marta Mestre chegou a Guimarães, no ano passado, para assumir a direção artística do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG). A curadora achou que lhe devia acrescentar um “s”. Ficou “museu mundos”, fazendo o plural de um espaço que considera “singular” no panorama museológico português. “Existem nele várias realidades, ficções, uma polifonia de vozes dissonantes, e é muito interessante navegar nesta contemporaneidade”, sustenta.
Fazer curadoria é, para ela, um “ato de escuta”, uma forma de “criar espaços, singularidades”. Um trabalho delicado, exigente, de mediação, criação de linhas interpretativas, e de aproximação dos públicos: “Temos que trabalhar as matizes, conseguir que os projetos tenham vozes especificas”, diz ainda. “E é a sua soma que engrandece o museu, e avança numa certa reflexão contemporânea.”
Marta Mestre nasceu em Beja, em 1980, onde viveu até aos 19 anos, altura em que veio para Lisboa estudar na Universidade Nova, onde se licenciou em História da Arte. Prosseguiu estudos em França, e depois demandou o Brasil, onde trabalhou no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, no Museu de Arte Moderna e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Regressou a Portugal para dirigir o CIAJG e o primeiro programa artístico que lançou foi “Nas Margens da Ficção”, no qual se inscreve o ciclo Ficcionar o Museu, que pode ser visto até 9 de abril.
Além da obra de José de Guimarães e das suas coleções de arte africana, pré-colombiana e chinesa antiga, em exposição permanente, apresentam-se Escola de Lazer, de Priscila Fernandes (de 14 a 29, realiza-se Vaivém, um programa de visitas e conferências em torno da obra da artista com o Sismógrafo do Porto), Amazing Fantasy, de Ana Vaz, Diário Atmosférico, de Virgínia Mota, as esculturas Meio Olho, Cara Longa, de Pedro Henriques, em diálogo com a sala das máscaras, “maternidades” africanas, e Devir-Desenho-Objeto, do próprio artista e colecionador. E ainda Complexo Colosso, do curador visitante Ángel Calvo Ulloa e Pasado, do mexicano Rodrigo Hernández. Oito exposições em 13 salas para refletir sobre o museu como uma “máquina de ficções”. Depois segue-se o ciclo dos dez anos do CIAJG para pensar o tempo.
Jornal de Letras: Como é que o CIAJG vai assinalar os seus dez anos?
Marta Mestre: Certamente será um ano de balanço, mas em jeito de futuro. Estamos a preparar uma programação muito centrada no debate sobre o museu. Ou seja, vamos colocar em perspetiva o tempo, real, simbólico, político, dos objetos que o habitam.
Porquê?
Falta-nos contar as suas histórias. E essa é uma das coisas que vamos fazer em 2022, aprofundar as histórias da coleção, os significados de cada conjunto de objetos e não vê-los todos em conjunto. Uma das críticas que se fazem hoje aos museus é precisamente o de amalgamarem os seus objetos, uniformizando as suas especificidades.
Impedindo a sua ‘respiração’?
Sim. E gostaríamos que a reflexão este ano fosse no sentido de lhes devolver essa respiração. É um caminho lento, que implica desafios, mas vamos começar pelo olhar dos próprios artistas contemporâneos para a singularidade dos objetos do museu. Nesse sentido, convidámos o Pedro Barateiro para um diálogo com a coleção permanente e a sua história, cruzando as reflexões sobre o passado colonial e pós-colonial em Portugal.
Que novas abordagens haverá da própria obra de José de Guimarães?
Vamos ter uma grande exposição sobre os seus manifestos. Ele fez um primeiro, na década de 1960, chamado Arte Perturbadora, o segundo, A Ratoeira, já na década de 1980, e um terceiro a que chamou Esta Cultura Faz-nos Velhos, nos anos 90. Todos foram acompanhados de uma obra plástica que vamos igualmente apresentar. E iremos convidar José de Guimarães a fazer um quarto manifesto. Depois, teremos um programa que também se chamará Manifestos, feito com artistas que estão a viver em Guimarães.
E estamos a precisar de manifestos hoje?
Absolutamente. Os manifestos, e lembrando os famosos do princípio do séc. XX, vêm sempre com muitos pontos de exclamação, ou seja, trazem um caráter de urgência e de mudança. Estamos a viver uma crise da linguagem e os artistas, como José de Guimarães, servem-se desse formato como uma forma de dizer basta, de afirmar a sua voz. É um gesto muito empoderador, sobretudo neste momento em que as curadorias têm cada vez mais preponderância – e contra mim falo… Essa é uma preocupação que tenho, que a voz singularíssima de cada artista não se dilua em agendas.
Que outras exposições vão ocupar o CIAJG?
Ainda para este semestre, a inaugurar em abril, convidámos um artista angolano, Yonamine, que cruza muitos elementos da cultura pop, mass media, com uma atitude iconoclasta muito interessante. E também Mathieu Abonnenc, da Guiana francesa, que nos irá trazer um filme que tem a ver com um velho álbum de memórias, da história colonial. No projeto Curador Visitante vamos ter o brasileiro Rafael Fonseca, que tem trabalhado a voz e também o silêncio, e vai cruzar a história de Guimarães e especificidades locais. Penso que trará artistas brasileiros que estão a fazer um trabalho muito interessante, refletindo sobre questões prementes, politicas, ambientais, sobre a Amazónia, o corpo, a identidade.
Marca da pluralidade
Há uma intenção de trazer artistas de vários cantos do mundo?
E de vários quadrantes. A pluralidade é uma marca do CIAJG. Interessam-nos artistas que tragam um olhar que possa descanonizar e abordar as estéticas do Sul, que pelo facto de não terem sido edificadas segundo a matriz europeia são mais abertas a outras formas, à história oral, aos saberes não científicos, a outro tipo de conhecimento. Nas Margens da Ficção tem a ver com essas vozes, essas formas de narrar que, não tendo entrado no cânone, ainda assim estão muito presentes, porque não somos só ciência e frieza europeia.
Foi sob o signo da ficção que iniciou o seu trabalho no CIAJG. Porquê?
Nas Margens da Ficção convoca a nossa capacidade de ficcionar, num momento em que tudo é presente, e que está ameaçada essa capacidade de contar as histórias e voltar a contá-las, algo que é constitutivo do ser humano. A ficção é o espaço em que os significados estão em aberto e podem ser trabalhados de uma maneira ética. Pensá-la não é estar fora do real e não é uma ficção alienante que propomos. Quando apresentamos as maternidades africanas, por exemplo, não estamos apenas a falar de feminismos ou a seguir a agenda, estamos num plano mais amplo, aquele que a maternidade edifica com a ficção, o espaço da linguagem. E o lugar da mãe, do materno, é fundamental para a configuração da nossa capacidade de imaginar o mundo.
É um pouco avessa às chamadas agendas atuais?
Evidentemente elas são importantes hoje, até para pensar um museu que seja mais justo e inclusivo. Mas não interessa o panfletário, a arte não é sobre nada, tem que ser.
Um caminho particular
O que tanto a interessou no CIAJG para decidir deixar o Brasil, onde trabalhou dez anos?
Quando abriu o concurso público para a direção artística do CIAJG, candidatei-me porque me interessou o caminho muito particular do museu e que tem a ver com reflexões que cruzam a arte contemporânea, patrimónios culturalmente diversos e intervenção cívica. Ou seja, interessou-me muito a natureza híbrida do CIAJG, diria mesmo polifónica, um termo que me é caro. O facto de nele habitarem coleções, obras de arte, energias, imagens dissonantes, que não foram feitas para estarem juntas, é uma das suas particularidades. E que o faz singular no panorama das instituições museológicas em Portugal. O trabalho do anterior diretor do CIAJG, Nuno Faria, que considero muito relevante, apontou já esse caminho de entrecruzar a obra e o acervo de José de Guimarães com as questões constitutivas da modernidade, o primitivo, a ideia de perceção, da linguagem, da História. Quando assumi o CIAJG, com essa herança, pensei: “E agora? Para onde podemos apontar?”, Estive a pesquisar os arquivos do próprio museu e o campo narrativo e ficcional surgiu como possibilidade de expandir esse léxico, o chão discursivo do CIAJG.
Daí, Nas Margens da Ficção?
Os programas artísticos são, de certa maneira, guiões de leitura, na verdade motes poéticos para que as pessoas possam navegar. Acho muito importante que os museus deem aos públicos pistas de leitura, modos para que se possam relacionar e interpretar os seus acervos.
E é a partir da obra e das coleções que se desenvolvem essas linhas interpretativas?
A coleção é o pensamento, o cérebro e o coração do CIAJG. É a partir dela que se extraem as linhas de programação, inclusivamente os pontos de vista críticos. Convidámos artistas que se articulam com a coleção e o trabalho do José de Guimarães. Nas Margens da Ficção, ou como a arte contemporânea pensa o território entre a realidade e a ficção, é algo que remete muito para o tempo presente. Em abril, começámos com exposições de artistas que traziam essa carga narrativa como Fernão Cruz, que agora expõe na Gulbenkian, que inclusivamente trabalha com materiais, a pasta de papel, com que José de Guimarães também trabalha, e que tem uma forte carga ficcional no seu trabalho.
Mas também fizemos uma belíssima exposição sobre o mito, convocando artistas como Kiluanji Kia Henda, Horácio Frutuoso, os arquivos do filme Non ou a Vã Glória de Mandar, de Manoel de Oliveira, uma obra paradigmática de José de Guimarães, El-Rei D. Sebastião, que trouxemos da Gulbenkian. Aliás, foi a partir dela que nasceu essa exposição. E ao longo do ano passado tivemos connosco no programa Curador Visitante, o galego Ángel Calvo Ulloa, que trabalhou o território da arqueologia, a partir do colosso de Pedralva, um achado arqueológico do séc. XIX, a partir do qual se especulou muito sobre a ideia de origem, o que em Guimarães é muito curioso. Interessam-me muito mitos e narrativas locais. De tão locais elas são globais, intemporais. E não esqueçamos que o próprio José de Guimarães foi aprendiz de arqueólogo…
Uma cidade farol
Fez questão de se mudar para Guimarães?
Foi uma loucura. Mas achei que era importante viver na cidade onde o museu estava. A curadoria tem um lado importante, que é criar ligações com o território. E sinto que vim para uma cidade viva, que, do ponto de vista do teatro, da música, da dança, é bastante rica. O grande drama, em Portugal, é a questão das assimetrias regionais. Eu nasci em Beja, sei o que é uma cidade perdida, sem oferta cultural. Guimarães é muito especial, uma centralidade, e há todo um trabalho que a Capital inegavelmente fez.
Em que sentido?
Fundamentalmente a construção de um olhar, em que a cultura é muito valorizada. O desafio é fazer com que as cidades fora dos grandes centros consigam vibrar. Penso que Guimarães, nesse sentido, é um farol e conseguiu, com a capital, alavancar um ciclo utópico, que evidentemente não está ainda completamente ganho. E é preciso chamar a atenção dos decisores políticos, das entidades oficiais, de mecenas, para a importância de uma estrutura como o CIAJG que é preciso apoiar. Porque tem que honrar a sua missão, que é ser um polo difusor da cultura ao Norte de Portugal.
Como perspetiva o futuro?
Fora de Lisboa e do Porto, o CIAJG é talvez um dos mais importantes centros de arte do país e tem um alcance internacional. Mas há muito trabalho ainda a fazer. Diria que há dois eixos importantes para o futuro, o local e justamente o internacional. Seria importante conseguirmos ‘exportar’ conteúdos, mostrar a arte portuguesa e os projetos de criação lá fora. Acho que os museus estão cada vez mais a apostar nas singularidades e não na uniformização que a globalização trouxe. Evidentemente que há exposições blockbuster, mas o lado da investigação e da reflexão é muito importante. Aqui fazemos as nossas exposições para os nossos espaços. Mas podem ser internacionalizáveis. E a coleção de José de Guimarães, no debate atual sobre os passados coloniais e o modo como nos relacionamos com os patrimónios não ocidentais, tem um papel importante, que pode ainda ser mais amplificado e trazer questões que nos podem amadurecer enquanto sociedade.
E o eixo local?
Ainda carece de muitas ligações com a comunidade, os artistas. Este ano teremos também uma parceria com a Universidade do Minho e o Centro Para os Assuntos da Arte e da Arquitetura, CAAA, o programa Triangular, que vai pôr os alunos de artes visuais a circular e a expor nas instituições de Guimarães, tendo artistas tutores que os vão acompanhar e laboratórios vivos de formação. E, com os programadores de A Oficina, que gere o CIAJG, faremos os nossos habituais concertos, ciclos de cinema.
Um cruzamento com outras artes importante para a vida do museu?
Sem dúvida. É preciso dessacralizar e habitar o museu. Gostaria de o tornar, no futuro, menos um lugar de exposições e mais um lugar de encontros, menos um lugar em que vamos ver o acervo e mais um lugar em que vamos para estar. J