Tenho acompanhado e testemunhado o percurso de Graça Morais desde a sua primeira exposição individual na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa, em 1980, intitulada “O Rosto e os Frutos”, apresentada por Fernando de Azevedo, a metamorfose do universo das suas formas sempre fiéis ao sopro inspirador das suas origens transmontanas. Egídio Álvaro sintetizou já em 1976 a criação da artista, quando esta, bolseira em Paris, se estreou: “O mistério, o maravilhoso, a liberdade na natureza. Visão romântica certamente, poética também, mas igualmente crítica, violenta.” Também Silvia Chicó caracterizou o seu peculiar estilo: “A tensão entre uma representação naturalista, em que um quase academismo se assume, e é deliberado, e a negação desse mesmo academismo pelo uso da desmesura e da imprevisibilidade, constituem a originalidade da pintura de Graça Morais.” Ou seja o entrecruzar das vertentes fundadoras da arte, a clássica e a barroca numa visão totalizadora da natureza humana e do seu destino poeticamente e metaforicamente ligado ao Cosmos.
Como Chagall e a sua Vitebsk natal, a artista procurou e encontrou uma inspiração para a sua estética em vivências simultaneamente pessoais e universais na aldeia de Vieiro (Trás-os-Montes), onde nasceu em 1948. Na sua linguagem plástica vive a memória da pintura, de Bosch, à exuberância barroca, ao tenebrismo das gravuras e das pinturas negras de Goya e dos grandes românticos, ao filão surrealista, ao traçado vigoroso de Rouault e ao dramatismo telúrico da “Guernica” de Picasso. Misto de surrealismo, de arte fantástica, de naturalismo expressionista e de expressionismo onírico, marca da sua profunda originalidade, sob o signo do Sagrado ou da sua nostalgia, como a respeito da sua pintura escreveu Fernando Pernes (FP) evocando André Malraux que considerava ser esse o sentido da arte do século XXI.
Na arte de Graça Morais a mulher tem sido a mediadora de um poético e dramático diálogo com o universo, simultaneamente lírico e trágico (FP). Um diálogo que espelha outras tensões, entre a sensualidade e o misticismo, o Cosmos e o divino, o Sagrado e o profano. Os rostos femininos confundem-se com o esplendor e a beleza dos frutos da terra ou com as criaturas de um mundo animal e violento, espécie de dramática metáfora do seu destino. Atravessam o palco do que parece a ancestral cena de um sacrifício, prelúdio de um renascimento cósmico sob o signo do amor e da paixão. Paixão do visível, mas também do invisível que esconde e ao mesmo tempo revela um segredo, as núpcias do céu e do inferno, o esplendor de uma presença anunciada.
Ocres, brancos, cinzas, negros, vermelhos, delicados, bruscos, nos agrestes movimentos da tinta, dóceis e rebeldes que recusam o destino da matéria e recriam a alma de uma matéria liberta, devolvida à essência da luz que irradia no âmago da noite. O destinatário, o mensageiro, o personagem central, o figurante de todos os dramas, confundido com a terra, fazendo corpo com ela e dela se levantando em súbita revolta, dominador, dominado, é o homem. Ou antes, a mulher, numa soberba interrogação do destino humano que prossegue nesta exposição, num crescendo de exaltação e pavor.
Via sacra de uma dor que se estende a toda uma civilização, retrato em fogo e trevas, incêndio obscuro envolto no terror de um rosto perdido, que aparece e desaparece, espécie de visitação funambulesca de uma morte anunciada. Paisagens dantescas, sob o signo do cão, condutor das almas no além ou do bode, com os seus cornos detentores de uma energia satânica.
Figuras truncadas, embrionárias, incompletas, fresco de almas sombrias em corpos que não lhes pertencem, imagens travestidas e fantasmáticas, uma deambulação sem rumo entre máscaras onde parece acender-se uma dor mais antiga do que o homem. Na caminhada do medo acendem-se os traços, negros e voluptuosos no ofício das trevas de um tempo sem espaço, de um espaço onde se acumulam os puros destroços de uma alegria que parece nunca ter existido. Avesso da luz, avesso de uma terra prometida, de um éden que se transformou em labaredas e cinzas de uma esperança amordaçada. As emoções, os olhares, criam presenças difusas, evanescentes e intensas, como o traço e a cor, o seu poder e a sua mais íntima substância. Olhares para dentro numa planície queimada por onde perpassam vagos desejos, vidas que não chegaram a ser.
Sombras de uma noite que sentimos a fase negra de uma alquimia visceral e profundamente anímica.
A artista atingiu uma fronteira que é ainda o real, mas o real vislumbrado como esfíngica assombração, dealbar de um negrume que em si contem as sementes da aurora balsâmica da alma. Este é o palco dos nossos temores mais secretos, entre esgares e figuras simiescas, metáforas de uma humanidade que não cumpriu a sua vocação, a mesma de séculos de pintura: a luz, imagem do conhecimento e do divino.
Alguns grandes mestres da pintura do Ocidente, como Matisse, Chagall ou entre nós Júlio Resende, mantiveram-se fiéis a essa luz, herança do Paraíso. Outros como Goya, Duchamp ou Salvador Dali deixaram-nos como herança um labirinto onde o Minotauro nos devolve a imagem de toda uma civilização. Graça Morais tem vindo a percorrer as estações de uma via sacra de paixão e dor, outros tantos retratos de um humano que parece agora longe do sagrado e das fontes salvíficas da sua regeneração. Pietás grotescas, figuras jacentes num sono realmente próximo da morte, galeria trágica que é uma caminhada para as trevas.
Vieira da Silva, que os azulejos de Lisboa inspiraram, pintou nas suas últimas obras a turbulência de um infinito luminoso que prolonga a nossa efémera passagem neste mundo. Graça Morais foi capaz de criar a dolorosa procissão onde tomam forma todos os terrores de uma civilização separada das origens salvíficas da vida: mas é ainda aí, nessa ardente noite que cintila obscura, uma luz transfigurada.