O Lugar do Mestre JÚLIO RESENDE Chama-se Lugar do Desenho, fica em Valbom, Gondomar, e é um projecto que condiz com a figura que lhe esteve na origem: Júlio Resende. É sábio e modesto, intemporal, o grande pintor de 83 anos que privilegia o contacto com os mais jovens, faz-nos pensar, emociona-nos. Apenas três funcionários, e um jardineiro, fazem o restante. Mas ainda hoje, quando fala neste projecto, o Mestre passa a mão pela testa, como se procurasse acalmar um turbilhão de ideias, de emoções, e sorri. Entretanto, naquele belo lugar é sempre possível ver obas suas e agora está ali patente uma magnífica exposição de ilustrações que foi fazendo ao longo da vida (ler critica de Maria João Fernandes, nas págs 33/34) RUI LUÍS ROMÃO Aconteceu quase por acaso, este Lugar do Desenho.
Muito pela necessidade de conseguir espaço vital.
Um espaço para abrigar desenhos e mais desenhos, tentativas acumuladas ao longo de muitos anos de trabalho. Depois de uma depuração, sobraram, imagine-se, cerca de dois mil desenhos. E o seu destino surgiu da iniciativa de amigos de Júlio Resende, ligados à arte, que tiveram a ideia de criar um espaço onde esses trabalhos pudessem ser expostos, de acordo com um critério que vai sendo definido caso a caso.
“Achei que a ideia não seria má: preservar e divulgar esses desenhos. Daí para a frente foi, não uma luta, mas um desejo muito grande de concretizar o projecto. Vamos com quatro anos de actividade, perto de cinco, cumprindo sem qualquer dúvida os propósitos que estavam na essência do Lugar do Desenho”. A única pena é que, para construir este Lugar, e por razões burocráticas, “se teve que fazer uma Fundação com o meu nome. Coisa em que não estou nada interessado”.
No fundo, pretende-se que as pessoas possam ver um percurso, eventualmente com hesitações. “Recuos não, porque suponho que nunca há recuos. Mas pode haver hesitações, num período de mais de cinquenta anos”. Naturalmente, isso tem menos a ver com o criador, do que com toda a evolução que se deu, desde os anos quarenta até hoje. O critério é o que procura não deixar nada na pasta, seja tematicamente, ou abrangendo um período determinado em que o traço do Mestre sofreu uma evolução.
O espaço, acolhedor, é relativamente pequeno, e pretende, antes de mais, deixar as coisas claramente postas, “em termos do que o desenho revela, estando imanente dentro de nós”. Há uma série de estudos que depois deram quadros, outros não. É esse percurso que aqui se mostra, em exposições bastante visitadas por grupos escolares de vários níveis, e outras associações.
PEDAGOGO Enquanto docente na antiga Escola de Belas Artes, Júlio Resende já se tinha apercebido de que aquilo que se fazia na Escola não tinha como objectivo claro a comunicação, “o que me parece o fundamental”. É também uma questão de consciência do artista. A ESBAP, apesar das poucas condições, teve várias iniciativas de divulgação, de contacto, mesmo no Interior do país. “E isso é sempre muito enriquecedor, quer para quem usufrui, quer para o produtor artístico”.
“O que estamos a fazer no Lugar do Desenho insere-se nesse mesmo espírito. Passase aqui o que mais dificilmente se passa num Museu, por exemplo. Este é um lugar de diálogo, não de monólogo. Aqui, os problemas, as questões, as dúvidas, põem-se, mas ninguém é senhor da verdade. Quem guia as exposições fala ao nível do interlocutor, e embora a arte acabe por ser transcendente, a sua discussão não deve ter nada de transcendente”. A questão da sensibilidade é muito importante, e parece estar presente neste espaço, em permanência.
As preocupações que sente Júlio Resende, “e hei-de morrer com preocupações porque elas nunca se extinguem”, levam-no à convicção de que qualquer indivíduo tem várias capacidades, dispõe de órgãos que lhe possibilitam a sensibilidade. “Esta só tem que ser despertada, e quanto mais cedo melhor. Procuramos utilizar uma linguagem muito acessível, para falar das coisas que estão ali, que se mostram. O que é que isso representa em termos de objectivos, de forças que estão lá, que dinamizam a sensibilidade”.
O Lugar do Desenho tem respondido às solicitações de várias autarquias, levando exposições a outros sítios. Mas sempre com este carácter, criando um modo aliciante de mostrar os trabalhos, de forma a que as pessoas vejam e se interroguem sobre o que estão a ver. “O ver e o pensar são duas coisas que se podem confundir, quase, e é isso que nós pretendemos. Este é um objectivo que se impõe numa sociedade, numa vida em que tudo passa de uma forma rápida, em que não há tempo para a pessoa sequer se aperceber de que está a viver”. Com a idade, este é um pensamento que se vai acentuando: a questão da vida e do tempo. “É algo que me preocupa muito, porque é uma necessidade, realmente, a pessoa aproveitar ao máximo a existência”.
Um espaço de luz, para ser auferido, com um jardim cuidado, é assim o Lugar do Desenho.
“Por aquilo que eu ouço, as pessoas gostam de cá vir, mesmo que não seja para ver uma exposição. Vêm, tomam um café… usufruem de uma qualidade de vida que queremos que constitua um exemplo. Queremos que as pessoas reparem na paisagem, no rio, neste Douro que tem tanto carácter, e é preciso preservar.
Tudo isso está nos nossos objectivos”.
Aos oitenta e, não importa quantos, Júlio Resende sente que não tem tempo para nada.
Ou está ocupado no atelier, ou então a falar com jovens, “que ainda não estão presos a conceitos muito definidos. E outra coisa, nós aqui não falamos só de artes plásticas. Depende, podemos falar na música, no paralelismo com a dança, enfim, com tudo aquilo que é a exaltação da vida, com tudo aquilo que a comunicação pretende ser, pêlos meios que tem, e pela sua forma”.
CONTINUAR, SEMPRE Talvez a diferença que o Lugar do Desenho marca inelutavelmente seja aquela que se coloca logo à partida ao visitante, “Não temos nada a ensinar, estamos ali também para descobrir coisas com as outras pessoas. É uma maneira aliciante de encarar o problema, sem ideias feitas. Gostava que o conceito do desenho, abordado aqui, fosse muito amplo. E que falássemos com outras pessoas, de diferentes sensibilidades, sobre como é que as ideias surgem. Cada artista terá as suas integrações intimas.
Como é que depois a coisa surge cá para fora, o que é que se passa durante a execução de um trabalho, o que é que está dentro de nós quando trabalhamos? Tudo isso é muito interessante, porque há reflexão, há sentido critico, e depois há a técnica. Se falarmos disto com as pessoas, elas começam a perceber que a criação resulta da pessoa inteira, com toda a gama de intenções, aparentemente impossíveis de conciliar.
Então, – imagino que isto tem a ver com muitas áreas: com a engenharia, com a medicina… Penso que o desenho é algo que importa, ainda que se formule apenas mentalmente. Depois, há toda uma técnica para pôr isso cá para fora. Todas as nuances de voz, toda a organização”.
No Lugar do Desenho, para além das actuais duas salas, uma das quais para exposições temporárias, “gostaria de ter um novo espaço onde se pudesse passar da teoria à prática, onde as pessoas pudessem experimentar. Mas não sei se conseguiremos lá chegar. Enfim, o Lugar do Desenho não tem sido assim muito propagandeado, até porque não .temos estrutura para isso. E apesar de termos ambições estamos limitados”. Ao fim destes quase cinco anos, Júlio Resende tein dificuldade em determinar se paga um preço demasiado alto pela opção de trazer para a periferia do Porto um espaço como este. “Tinha atelier no Porto, mas nos anos 60 o arquitecto Carlos Loureiro, um amigo, desafiou-me a vir para aqui trabalhar, e acabei por mudar-me definitivamente. Só que o rio é o mesmo… Gostava que as pessoas daqui de Gondomar percebessem que é necessário respirar, viver bem, com qualidade”.