Foi em 1971 que foi gravada, em Paris, Grândola Vila Morena, que acabou por ser a segunda senha do 25 de Abril, indicador que a revolução era irreversível. No mesmo ano, gravaram-se em Paris os primeiros álbuns de José Mário Branco e Sérgio Godinho.
E, em Portugal, aconteciam dois festivais marcantes: Vilar de Mouros e o Cascais Jazz. Ao mesmo tempo que apareciam importantes fenómenos, como o programa ZipZip ou os primeiros passos de músicos como Marco Paulo e Quim Barreiros.
Tudo isto aparece em A Revolução antes da Revolução, livro de Luís de Freitas Branco, que faz uma leitura do ano em que tudo mudou na música em Portugal.
O teu trisavô foi um importante compositor erudito e o teu bisavô um dos mais reputados musicólogos portugueses… Mas tu não és o primeiro a gostar de rock na família?
Luís de Freitas Branco: A primeira revolução antes da revolução foi a do meu avô. Foi o primeiro filho do musicólogo João de Freitas Branco, secretário de Estado da cultura. O meu avô teve uma banda de rock, os Claves, que participaram no grande concurso do iéié em 1966 e venceram.
Uma das groupies dessa banda era a minha avó. E, na consequência disso, o meu pai apareceu sem aviso. Há vários acasos que me fizeram estar aqui. Aliás, o meu trisavô, o compositor Luis de Freitas Branco, teve vários casos extraconjugais e, de um deles, nasceu o seu único filho, o meu bisavô, João, às escondidas no Conservatório Nacional de Música.
Como assim?
Ele nasceu clandestinamente no gabinete do meu bisavô no conservatório e depois morou grande parte da vida num apartamento que ele arranjou que fica no mesmo prédio.
Essa herança e a apetência pela música é transmissível… (a outra parte, espero que nem por isso).
Sempre tive o capital cultural. Em miúdo já sabia de trás para frente a discografia dos Beatles, Rolling Stones, U2… Portanto, tive logo à partida o que outros precisaram de ir à procura, na música pop, no jazz e erudita. Recebi sobretudo por via do meu avô e do meu pai. Mas nunca tive gosto nem jeito na música prática, por isso fui naturalmente à procura de um espaço onde escrever. O resultado mais recente é este livro.
Sentes alguma responsabilidade acrescida por teres esse nome?
Não sentia, porque nunca fui músico. Mas agora sinto mais um bocadinho. Comecei a tirar o mestrado de Ciências Musicais na Nova, onde o meu bisavô foi professor, e isso já tem algum peso. O professor olha para a lista dos alunos, vê lá o nome do compositor e sente-se baralhado (risos). Mas não sinto um grande peso. Evidentemente numa família músicos ninguém é rico e isto é mais uma forma de abrir portas e quebrar o gelo, como se vê nesta nossa conversa.
Trabalhas ligado à música?
Trabalho numa agência de comunicação. Durante o período da Troika fiquei sem emprego e o primeiro-ministro convidou os jovens a emigrar. E eu fui para o Brasil, onde vive o meu pai, e trabalhei em jornalismo cultural, no Globo. Mas depois cansei-me da precariedade e decidi ter um trabalho estável durante o dia para poder escrever sobre música à noite.
Quando é que descobriste que 1971 era o ano de charneira para a música portuguesa?
Qualquer pessoa que trabalhe em volta desta música já perceber que 1971 é um ano especial, pelos três álbuns fulcrais – Cantigas do Maio, de José Afonso; Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, de José Mário Branco e Os Sobreviventes, de Sérgio Godinho.
Além disso, ocorreram aqueles dois eventos: os festivais de Vilar de Mouros e o Cascais Jazz. Voltei a lembrar-me disto, em 2021, e desafiei o Observador a publicar em fascículos, à razão de um por mês, textos sobre esse ano. Essa foi a base para este livro.
Não te debruçaste apenas sobre a música de intervenção, num sentido estrito…
Quis falar da música em toda a amplitude, do Marco Paulo ao Bonga, do Gabriel Cardoso ao José Afonso, do Carlos do Carmo ao Carlos Paredes. Isso levou-me a pensar que cada mês fosse ligado a uma visão musical. E que cada visão musical fosse também uma visão ideológica. O livro é feito de uma série de combates, de capítulos que estão uns contra os outros.
O que acontece em 1971 para que toda esta ‘revolução musical fosse possível?
É consequência de um certo afrouxamento do regime, a célebre Primavera Marcelista. O tiro de partida é o programa ZipZip, para o qual os baladeiros são todos convidados, dando-lhe um grande palco. Esse afrouxamento vinha da politização da geração que se formou durante as crises académicas, com mais dinheiro no bolso e individualismo.
Daí surgiram fenómenos como Marco Paulo. A individualidade é um elemento perigoso para regimes autoritários. Também contribuiu a profissionalização das editoras, da televisão, surgem programas de rádio especializados no tipo de música que estava a aparece. Há uma juventude a combater contra o isolamento de décadas.
1972 já não foi assim?
Culmina em 1971 porque em 1972 é imposto o exame prévio. Isso estabelece a censura prévia que não existia até então nos discos Depois há também um apertar na censura dos eventos. O José Afonso teve uma dificuldade cada vez maior em cantar em público, o Francisco Fanhais até decidiu emigrar.
O regime não se limitou aos cantautores… havia também uma censura moral…
A censura moral era violenta no rock e especialmente com as mulheres que cantavam. A Ana Maria Teodósio e a Rita Olivais contaram-me que havia uma repressão brutal que ia da família ao próprio estado. E depois há este combo da Maria Teresa Horta ter resolvido fazer um disco de rock. Para o regime aquilo é o diabo a quatro e saiu logo de circulação.
O festival de Vilar de Mouros também é exemplo disso.
Vilar de Mouros pode ocorrer porque era no Alto Minho, sem nenhum músico de intervenção e quase ninguém cantava em português. O quarteto 1111 tinha acabado de ter um disco completamente censurado, mas não cantaram nenhuma música do álbum. O concerto foi todo em inglês. Foi uma loucura de um ginecologista obstetra que quis fazer ali um grande festival. Ele queria os Beatles, ainda tentou os Black Sabath e conseguiu o Elton John. Totalmente independente. Houve uma distância entre a população e o festival que acabou por fazer as pazes, no final, com Amália e o Duo Ouro Negro.
E o Cascais Jazz?
O festival teve o aval do regime que ajudou a escolher o local. Mas a surpresa ali no meio foi o Charlie Haden fazer aquela frase memorável sobre a libertação dos povos africanos. O mais extraordinário é a reação do público, que aplaude aos gritos. O povo estava à espera do 25 de abril e as manifestações musicais servem de termómetro para revolução que estava a chegar.
Como é que no meio disto tudo vieram os iluminados, como o Carlos Paredes ou o José Afonso?
O Carlos Paredes tinha grande vantagem em ser instrumental. Um militante comunista preso e torturado, mas ainda assim o regime promovia-o internacionalmente porque a Amália também assim o pedia. Noutros casos é importante falar de Paris. São pessoas que estão exiladas em França e vivem intensamente o maio de 68.
Há um embrião revolucionário a partir do maio de 1968 de que faz parte José Mário Branco. Ele fez uma conceção wagneriana do que seria uma canção de protesto, uma revolução musical. Faz isso para o seu disco, mas também para o do Zeca e um pouco para o do Sérgio, que foi feito mais à pressa.
O que fez o 25 de abril a tudo isto?
Há uma completa alteração de paradigma. Antes do 25 de abril havia um inimigo em comum que era o regime, mesmo estando todos estes baladeiros contra o rock, o fado, o nacional cançonetismo. No PREC deixa de haver o inimigo em comum e os músicos passam a ser agentes políticos. Isso altera a estrutura. Dá-se um interregno de todas as outras expressões musicais.
É o próprio José Jorge Letria que diz que faz um saneamento musical. Todos se arrependeram disto mais tarde. Só nos anos 80 é que a música popular portuguesa iria vingar.
Hoje em dia, com a proliferação de ondas, movimentos contra movimentos, é mais difícil perceber as tendências?
Nem tudo é mau com a internet. No final de cada semana, vou ao spotify, e recolho os dados para saber as músicas mais ouvidas. Estou a fazer a tese de dissertação de mercado sobre 2011. Estou a analisar as manifestações musicais com uma amplitude de géneros. É fácil de fazer.