No Evangelho de João encontra-se um episódio famoso que tem lugar no Monte das Oliveiras, e no qual escribas e fariseus trazem à presença de Jesus uma mulher apanhada a cometer adultério. Invocam a Lei e a autoridade de Moisés para justificar que ela seja apedrejada até à morte. Sempre em silêncio, Jesus inclina-se e com o dedo escreve algo no chão. Eles insistem. Então Jesus ergue-se e responde: “Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra!”. E inclinando-se novamente recomeçou a escrever no chão. Quando ouviram as palavras de Jesus, todos abandonaram o local. Então, Jesus ergueu-se e disse à mulher: “Mulher onde estão eles? Ninguém te condenou?”. Ela respondeu: “Ninguém Senhor”. “Nem eu te condeno”, disse Jesus, acrescentando: “Vai e doravante não tornes a pecar” (João 8, 1-11).
Interpolado ou não na versão mais antiga do Evangelho de João, este episódio contém, na sua forma mais simples, a regra do perdão que separa Jesus de todos os dispositivos morais, culturais e religiosos inspirados no Deus do seu tempo e da sua comunidade judaica. Dessa regra continua a ocupar-se a teologia, apesar das palavras de Jesus pouco ou nada terem a ver com a religião institucionalizada, mas sim com espiritualidade. É esta, e só esta, entendida sem qualquer coincidência com a religiosidade, que projeta o perdão de Jesus a partir da interioridade mais profunda dele próprio, da sua vitalidade emocional, do núcleo de si como homem que se confronta com a realidade derradeira do apedrejamento de um ser humano; uma realidade que, à revelia da Lei religiosa, lhe passa a exigir uma ação, um gesto, uma palavra, enfim, no caso, a espiritualidade de um perdão.
No que diz respeito às formas mais complexas da mesma regra do perdão, foi a literatura que as trouxe para primeiro plano. Um dos seus exemplos mais elevados encontra-se no romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, nomeadamente quando, no final do romance, o escritor coloca na boca (ou na mente) de um Jesus crucificado uma afirmação tão arrasadora quanto espiritualmente iluminadora. Dirigindo-se aos homens e referindo-se a Deus, Jesus clamou: “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez” (p. 444).
Para além da magnificência de todo o contexto discursivo em que o narrador situa aquela afirmação de Jesus, o que sempre me cativou nesta imersão de Saramago na mente de Jesus foi o silêncio que lhe permitiu construir o desenho ficcional do perdão do imperdoável representado pelo desígnio de Deus lançar para a morte aquele que considerava seu filho (Martins, 2020 [2014]: 66-71). Do mesmo modo, o que mais me atrai no episódio descrito pelo apóstolo João é o silêncio contido nos gestos de Jesus, o qual, por duas vezes, se inclina e escreve no chão.
Aparentemente alheado da situação da mulher adúltera quando esta lhe é apresentada, no início Jesus mantém-se em silêncio, escrevendo no chão o que existe tão-só na sua mente e na sua imaginação. Ergue-se, fala e logo retorna à escrita para depois, em tom algo abstraído, abandonar a escrita para se dirigir à mulher e mandá-la em paz nos termos da humanidade comum por que a perdoou. A lição moral contida neste episódio é sem dúvida importante. Ela aponta para o princípio em que irá assentar muita da equação ética do Ocidente cristianizado. Mas considerado na sua riqueza criativa, o centro deste episódio, tal como eu o entendo (ou quero entender), encontra-se na concentração de Jesus nas palavras efémeras que vai colocando no chão.
PORQUE ESCREVE JESUS? E o que poderá ter ele escrito? Responder a estas perguntas equivale a percorrer todo o universo de possibilidades imaginativas da literatura ocidental emergente dos ensinamentos de Jesus narrados nos Evangelhos. Uma dessas possibilidades, pelo menos aquela que eu arrisco construir com mais empenho, é a de Jesus estar a escrever episódios do seu próprio evangelho nas areias do tempo, e que o vento levará ao futuro de homens e mulheres que o traduzirão segundo as suas necessidades e interesses espirituais.
Naquele singularíssimo momento da sua biografia, Jesus escreve no intervalo da violência do apedrejamento para fixar a consciência moral dos homens no princípio de cooperação que arquetipicamente nos liga a todos. As figuras presentes naquela ocasião afastam-se graças a um sentimento de compreensão que até ali estava adormecido, mas que as palavras de Jesus despertam para uma transformação tão profunda que leva a que todos, incluindo os próprios escribas e fariseus, desrespeitem a Lei religiosa a que estavam obrigados.
Na recusa momentânea da fala, no silêncio que adivinha a transformação, no recolhimento da escrita lançada no chão, Jesus escreve a metáfora de si mesmo num idioma cuja energia revela uma ordem inscrita nos redutos metafísicos da linguagem, do pensamento e da imaginação. Impondo um reconhecimento íntimo ao caos e ao informe dos sentidos e das emoções (ligadas, no caso, ao apedrejamento da mulher adúltera), aquela será a ordem da natureza ética da linguagem onírica e secreta a que os homens virão a chamar ficção. À maneira da ordem da escrita de Jesus, a ficção irá fundar-se num valor invisível que fará com que ela seja continuamente a representação moral do que a humanidade é ou pode ser.
JESUS ESCREVE NO VAZIO DA FALA, desenhando as palavras que nunca ninguém dirá a não ser os poetas e os artistas quando se inclinam para o chão pisado por homens e mulheres comuns. Jesus escreve o enigma da imaginação sob a forma de um manifesto silencioso em torno do perdão que irá depois sugerir aos homens que o rodeiam. É certo que esta apologia que Jesus faz do perdão e, no Sermão da Montanha, a oferta da outra face a quem nos ofende ou agride, é hoje, sobretudo depois da experiência nazi, o sintoma de um mal-estar civilizacional sem solução à vista. Do lado da filosofia virá mesmo o grito de que o perdão morreu nos campos da morte (Jankélévitch, 1986).
Sendo isto certo, não é menos certo que é sob a forma de inconsciente ético do perdão exemplificado por Jesus que muita da literatura ocidental irá nutrir-se. Saramago é um dos seus expoentes mais significativos, mas vale recordar a angústia acusadora de Albert Camus, um não crente muito próximo da espiritualidade saramaguiana, perante a ausência de esperança numa humanidade sem lugar para o perdão, a começar pelo exemplo dos cristãos (eclesiásticos ou outros) que “empoleiraram-no [Jesus] num tribunal, no íntimo do seu coração, e espancam, julgam sobretudo, julgam em nome dele. Ele falava com doçura à pecadora: ‘Eu também não te condeno!’; isso nada impede, eles condenam, não absolvem ninguém” (Camus, 1971 [1956]: 123).
Jesus escreve no chão ou num vazio que só a ele pertence. A efemeridade dessa sua escrita, bem como o deslaçamento temporal das ideias contidas nas formas entretanto desenhadas, aproxima-o de exercícios culturais africanos como, por exemplo, os da chamada prática sona constituída por impermanentes desenhos narrativos realizados na areia pelo povo Tshokwe do nordeste de Angola. Segundo a caracterização de Heduardo Kiesse (heterónimo artístico do investigador Pacheco Quiesse Monteiro Eduardo): “Os símbolos dos desenhos sona correspondem àquilo que traz à presença as palavras arenosas, são poemas movediços desenhados na areia, movediços por não estarem fixos num suporte transportável, desenham-se, apagam-se e (re)desenham-se sem moldes definitivos, fruto de imagens mentais que se materializam na areia” (Eduardo: 2018: 34).
ATRAVÉS DA ESCRITA NO CHÃO, Jesus também dialoga dinamicamente com práticas orientais como, por exemplo, o prolongamento da dimensão mágica e demiúrgica da caligrafia tradicional chinesa num movimento muito interessante de efemeridade da escrita e fugacidade das ideias por ela expressas. Esse movimento é conhecido por Caligrafia no Chão ou dishū (vd. Barbeita, 2021), e é uma atividade atualmente praticada sobretudo nos jardins e parques um pouco por toda a China. Com um balde de água e um pincel comprido, alguns homens desenham caracteres no chão que, no verão, rapidamente desaparecem devido ao calor e, no inverno, formam uma pequena camada de gelo que os torna ilegíveis. E logo recomeçam a escrever no mesmo chão.
Aqueles são diálogos assentes numa energia espiritual comum no interior de uma espécie de estrada cultural sem fim. Jesus escreve no chão, e nesse gesto há um ímpeto imaginativo de libertação da linguagem que, no entanto, a cultura de afiliação judaico-cristã em certa medida estancou ao registar a palavra mais pela sua permanência (“No princípio era o Verbo”) do que pela sua efemeridade. Fora da literatura, continuamos escravos das palavras e do significado finito das coisas por elas nomeadas. Por isso, o gesto de Jesus, que pela única vez escreve em vez de ensinar através da narração oral de estórias ou parábolas, também pode ser entendido como orientação para o ambiente multímodo da palavra ficcional, cujo poder, à semelhança da única escrita de Jesus, decorre da energia das emoções e dos sentimentos que essa palavra consagra.
COMO MUITOS OUTROS ESCRITORES, José Saramago, ateu convicto mas deslumbrado e espiritualmente atraído pela figura de Jesus, existiu naquele ambiente e nele fez sentir o peso da sua imaginação criadora. Jesus escreve e, como acontece com o escritor José Saramago, descobre o poder e os limites dos sentidos contidos nas palavras. Abstraído da fala, Jesus sente a força interior que lhe impõe a recusa do apedrejamento. Mas o segredo dessa recusa é na silenciosa escrita das palavras que se revela.
Escritores posteriores dar-lhe-ão formas históricas próprias, adequadas ao respetivo tempo e circunstância. Mas só os melhores de entre eles, como Saramago, é que encontrarão na sua imaginação criadora os elementos espirituais necessários à expressão da memória arquetípica do humano silêncio contido nas palavras escritas por Jesus. Profetas ou mensageiros, é seu o silêncio por onde não perseguem os sentidos das coisas, mas antes criam o sentido das coisas. Um silêncio que existe num território ficcional pertencente a um património humano comum (emocional, intelectual, psicológico, etc.), e onde muitas significações são possíveis, mas poucas verdadeiras.
* Este texto constitui a introdução de um ensaio em progresso em torno da espiritualidade saramaguiana, que por sua vez prolonga, ao mesmo tempo que especifica, alguns aspetos do binómio cultural Jesus´- Saramago que defendi em livro recente MFM
Obras citadas: Berbeita, Magda, “Como uma dança. Um encontro inesperado”. Revista Ler (Verão-Outono), 2021: 39-47; Camus, Albert, A Queda. Tradução de José Terra. Livros do Brasil e Verbo. 1971 [1956]; Eduardo, Pacheco Quiesse Monteiro, Visualismo Narrativo de Expressão Portuguesa e Angolana. Dissertação de Mestrado em na Fac, de Letras da Un. de Lisboa em 2018; Jankalévitch, Vladimir, Pardonner? [1971], L’imprescritible. Paris: Seuil: 13-63; Martins, Manuel Frias, A Espiritualidade Clandestina de José Saramago, Fundação José Saramago, 2014 (2020, 2ª edição aumentada); Saramago, José, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Caminho, 1991; Bíblia, Versão preparada a partir dos textos originais pelos Padres Capuchinhos. Verbo (1976).