“Existimos? A ilha do silêncio/ é habitada pela voz dos mortos/ que articulam sons mudos/ antes vivos; só nomes/ cobrem o mar onde nadavam corpos.”
Gastão Cruz, in Óxido
Sem contar com as reuniões que fez da sua poesia, Gastão Cruz publicou os seguintes volumes de inéditos: A Morte Percutiva (plaquette com que participou em Poesia 61, precisamente em Maio de 1961); Hematoma (1961), A Doença (1963), Outro Nome (1965), Escassez (1967), As Aves (1969), Teoria da Fala (1972), Campânula (1978), Órgão de Luzes (1981), O Pianista (1984), As Leis do Caos (1990), As Pedras Negras (1995), Crateras (2000), Rua de Portugal (2002), Repercussão (2004), A Moeda do Tempo (2006), Escarpas (2010), Observação do Verão (2011), Fogo (2013), Óxido (2015) e Existência (2017). São 21 títulos que se estendem por mais de cinco décadas de produção poética e crítica, sendo que neste plano — o da crítica — Gastão Cruz é o autor de A Poesia Portuguesa Hoje (1ª edição, 1973), depois revista e aumentada em 1999, com chancela da Relógio d’Água, mas com o ponto culminante do seu ensaísmo nesse volume axial da crítica de poesia em Portugal, A Vida da Poesia – textos críticos reunidos, editado em 2008. E importam também as traduções, de que relevo as seguintes: O Pelicano, de Strindberg (1993), O Conto de Inverno, de Shakespeare, e o Filho do Ar (seguido de Ana a Criada, A Dama de Monte-Carlo, O Mentiroso), de Jean Cocteau (1998).
Trabalho, portanto, que se dividiu entre a poesia e a reflexão sobre a poesia de poetas modernos e contemporâneos, mas trabalho que encontrou também no teatro uma das suas mais fundas razões de ser. Gastão Cruz é um nome central na literatura portuguesa não só porque contribuiu decisivamente para a renovação do discurso poético português no quadro geral das neovanguardas dos anos de 1960, mas também porque essa renovação se fez a partir da atenta leitura que dedicou, ao longo das décadas seguintes até 2017, a clássicos e modernos, portugueses e estrangeiros, ancorando a sua escrita numa noção restrita de poética, na qual as ideias de rigor, de austeridade, e talvez mesmo de “escassez”, muito devem ao magistério dum Carlos de Oliveira (1921-1981) e à releitura que lhe mereceram poetas-críticos como Fernando Pessoa (1888-1935), Jorge de Sena (1919-1978), António Ramos Rosa (1924-2013) ou Ruy Belo (1933-1978). Isto no que respeita à poesia e à crítica nacionais.
Baudelaire, Pierre Boulez, T. S. Eliot, Edgar Poe ou Ezra Pound são outras referências incontornáveis para relermos o Gastão-crítico, o qual, por razões geracionais, é marcado pela lecionação de David Mourão-Ferreira (1927-1996) e Monteiro-Grillo (1915-1967), mas também pelos estruturalismos, os estudos da linguística e a contribuição da estilística, dos formalistas russos e de Leo Spitzer a R. Barthes, de D. Alonso a R. Ingarden.
Não será possível desenvolver aqui de modo profundo essa influência no primeiro Gastão Cruz, mas valeria a pena ver como na edição de Os Poemas (2009), última vez a que o poeta se dedica a compilar a sua obra poética, são de nítida marca textualista, com forte preocupação com a forma e o transformacionismo das formas, poemas como “Cobalto nos faróis”, “Só a brasa das pernas despe o escuro” ou “O sol amarga a luz apodreceu” (todos da plaquette de 61), ou o poema “A cada dorso abre um dorso a morte”, ou “Esta dor este choro esta exclusão” (de Hematoma, 61), passando por verdadeiras artes poéticas dos livros de 1965 a 1969, como sejam “Um sentido de declínio”, “Para te dizer que sei sei que as”, ou os três andamentos de “Incendiário”, tudo poemas insertos em A Doença, 1963, e todos dependentes desse modo mutável e mutante de encontrar em determinados lexemas os eixos em torno dos quais a rede vocabular do poema se organiza.
Recordo ainda o poema “A Leitura” (três andamentos), todo ele dependente do efeito de variação-repetição da palavra “fogo”, sema que nos orienta na leitura cadenciada, atenta às assonâncias e aliterações de que o texto se faz. Cúpula dessa poesia arquitetural, absolutamente vigilante quanto aos efeitos fenomelódicos do idioma, são os poemas “Alteração” e “Primavera” (o verbo “transferir” como que congrega a intenção da escrita — um exercício de vocábulos cujo sentido e o som se labora em múltiplas transferências, de verso para verso, de estrofe para estrofe).
Nas dez canções de Outro Nome (1965) e em Escassez (1967), acresce à preocupação com a harmonização do som com o sentido, a implicação do tempo histórico vivido (Fascismo, Estado Novo, Guerra Colonial) com uma profunda consciência da tradição – a camoniana e a mirandina, sobretudo. Na Canção IV, escreve Gastão “Outro nome canção hoje daremos/ ao dia luminoso que nos cobre”, como que buscando na poesia a substantiva arte da palavra, a única capaz de, pela força de novas imagens e nova forma de ler o real, edificar uma realidade mais livre. Que esse outro nome é, por um lado, a própria poesia, eis o que não sofre contestação.
Corpo é o outro nome que o poeta pretende dar quer ao dia luminoso, quer ao “passado praia monte”, precisamente o lexema em função do qual o próprio viver da vida e da poesia se pensa e sente. O “duro pó/ das vidas apagadas” (Canção IX) será dito, nessa década de 60, por um cantar pobre (“Este cantar dos anos de pobreza”, lê-se em Escassez), o único que, justamente por ser pobre, nomeará com rigor a “aridez”, a “dor e a amaparada esperança” desse “fogo tão diverso que dormimos” (Os Poemas, p.89).
Porque é o desejo de viver o corpo a partir dum fogo diverso do fogo da época — o fogo da morte e da guerra não é o fogo do amor e do desejo, muito menos num país asfixiante como era o Portugal de Salazar e Caetano – o que motiva a reflexão sobre a própria poesia, eis porque o motivo do corpo aparece de novo em As Aves (1969), conjunto de 28 sonetos (tem Gastão 28 anos!): “Carregado de fogo o corpo instala-/ se nas linhas de tiro desferindo/ balas e despedindo-se/ ou isolando o amor// corpo instalado em linhas/ tensas de solidão” (Os Poemas, p.102), associado ao motivo das mirandinas aves e ao tema do fogo (horas nocturnas tensas as esperas/ inertes e a música violenta/ com que se rendem armas como aves”, do soneto A morte verdadeira também arde, p.103).
Dos sonetos de As Aves um há que é revelador dessa arte poética apostada em reformular o dizer clássico, de matriz mirandina-camoniana: “Que farei no outono quando ardem”, exemplo magno de manipulação dos verbos em orações (versos) quebrados em determinadas posições sintáticas. Um dado estatístico: o lexema “fogo” repete-se 65 vezes nos livros dos anos 60. Repetição, repercussão, Gastão Cruz atravessa os anos 70 inflamando o seu discurso com livros que reiteram uma tese de Deleuze: a poesia é uma fala em falha, isto é, exige que, dentro da fala quotidiana, aquele que a faz a faça contra o dizer banal, torpe, envilecido da linguagem.
Do livro de 72, Teoria da Fala, uma arte poética, outra, cuja leitura depende do modo como silabamos as palavras, as aliterações, os sons da língua: “Deito um peixe no eixo do meu peito/ aí o deixo devorar primeiro a vida”. Título do poema: “Paráfrase”, que o mesmo é dizer: repercutir lições antigas, sons similares, fonemas que, pela associação paronímica, assaltam o próprio significado das palavras, enriquecendo-as e pedindo do poeta a constante reaprendizagem delas: “Por vezes reaprendo/ o som inesquecível da linguagem/ Há muito desligadas/ formam frases instáveis as // palavras/ Aos excessos do céu cede o silêncio/ as constelações caem vitimadas/ pelo eco da fala”.
No fundo, em Gastão Cruz, como não creio que tenho acontecido senão com Fiama e certa Luiza Neto Jorge e todo o Ruy Belo, aprender a poesia é a-prender os sons da língua, como quem agarra a vida pelos vocábulos mais tensionais que afirmam o amor, o corpo, o sexo, a verticalidade com que se vive.
Poesia substantiva — até isso é evidente pelos muitos livros que têm como título uma só palavra: Escassez, Campânula, Crateras, Escarpas, Fogo, Óxido, Existência —, poesia nominal, a voz de Gastão Cruz é bem esse “insepulto corpo”, esse órgão de luzes (metáfora vinda do teatro) que ilumina quem a observa e como que vibra em quantos a ouvem. “Arte Poética”, poema de 1978, dir-nos-á: “O mar do fim de maio é uma imagem/ Das janelas estanques mal o vejo/ Sob a humana voz as suas vagas/ confundem-se com as ávidas palavras/ que preenchem o quarto como um verso” (in Os Poemas, p.142).
É a partir desse final dos anos 70, e consumando o projeto de uma poética centrada nos sons e nas imagens, que a linguagem de Gastão evolui, recentrando a cada novo livro os modos como poesia e vida, linguagem e corpo se podem dizer. A música das palavras, mas a música feita pelos pianistas (Gleen Gould, Emil Gilels, Richter, Horowitz, personagens dum poema de Escarpas, livro de 2010); a poesia como ofício que se fez ou não fez na vida consoante o corpo tivesse pedido “aquela espécie de alma/ que não pôde a poesia nunca dar-lhe”; a poesia como meditação sobre a existência (“Existir” é o poema que termina Óxido, de 2015, Existência será o seu título final, assim repercutindo a vida e a morte percutidas nos ritmos da fala em falha).
Eis porque Gastão Cruz, em magistrais lições de labor é, como ele próprio escreveu um dia de David Mourão-Ferreira, Mestre de Poesia.