Ao menos do ponto de vista editorial, o género biográfico está pujante, entre nós: há hoje dezenas de “biografias”, cujos autores derramam a sua vis biographica pelas mais diversas figuras e figurinhas, como se bastasse a alguém estar vivo para ter direito a, e ser razão para, uma biografia. Mas nem sempre foi assim: na década de 1950, em que eu cresci, eram poucas e normalmente superficiais as biografias que, de vez em quando, apareciam nos escaparates.
Havia, neste domínio, um nome que andava lá por casa, como por muitas casas burguesas: era o de Mário Domingues (MD), uma espécie de discreto Stefan Zweig português, cuja atividade reconhecida se desdobrava em múltiplos volumes sobre personagens e acontecimentos históricos, os quais encobriam uma profícua torrente subterrânea (encapotada em múltiplos pseudónimos) de mais de uma centena de títulos, sobretudo policiais e de aventuras, com os quais o autor ia fazendo pela vida. Daqueles tínhamos notícia; deste últimos nem sabíamos da existência; por maioria de razão, não podíamos conhecer, os já nascidos em ditadura, o que fora a intensa atividade jornalística e política do escritor.
Porque o MD das biografias do Infante D. Henrique, do marquês de Pombal ou do Condestável, era o mesmo a quem um livro recente presta a merecidíssima homenagem pela sua desassombrada intervenção pública de denúncia do colonialismo, nas primeiras décadas do século XX (José Luís Garcia, Mário Domingues, A afirmação negra e a questão colonial, Tinta-da-China, 320 pp., 18,90 euros). Os textos jornalísticos aqui dados de novo, em número de seis dezenas, foram publicados entre 1919 e 1928, na sua maior parte no jornal A Batalha, entre o auge da Primeira República e os primeiros tempos da Ditadura Militar instaurada em 1926. MD era filho de uma angolana negra e de um funcionário português de uma roça na ilha do Príncipe; muito pequeno, foi trazido para Lisboa onde a família paterna lhe deu educação no Colégio Francês; nos bancos da escola fez-se vagamente boémio e inseparável de Reinaldo Ferreira e de Armando Portela, com quem frequentava as mesas do café Royal do Cais do Sodré; e, ao entrar na idade adulta, descobriu-se anarco-sindicalista e redator de A Batalha, diário do movimento.
A intervenção jornalística e política de MD foi praticamente ignorada durante décadas. Só de há meia dúzia de anos para cá alguns investigadores, com destaque para o organizador da presente edição, se têm dedicado a revelar facetas do pensamento anticolonialista de Domingues, que viveu o bastante (morreu em 1977) para ver a ruína da ditadura e a emancipação dos povos africanos. Fiel aos seus ideais de juventude, o velho MD saudou o aparecimento de A Voz Anarquista, em fevereiro de 1975, com um texto vigoroso onde proclamava que “o anarquismo não é a desordem, a violência e o crime, como as forças reacionárias têm querido qualificá-lo.” E quando se leem os textos que escreveu há cem anos (sobre a política colonial da Primeira República, sobre a emancipação dos negros, sobre o racismo larvar na sociedade portuguesa, sobre o pan-africanismo cultural) não é difícil concordar com José Luís Garcia quando o considera “um precursor da afirmação negra.”
Esta dimensão da biografia de MD foi, para mim, uma revelação tardia. Volto à minha primeira imagem do escritor: a de autor de “evocações históricas” (não lhes chamava biografías, quando muito “escorços biográficos”), que, a ritmo impressionante, foi publicando a partir do início dos anos 1950. Apoiadas numa bibliografía não muito extensa, embora selecionada de forma criteriosa, as evocações de MD são repositórios daquilo que a historiografia do tempo tinha conseguido apurar, “reciclagens” brilhantes em registo narrativo de interpretações alheias. E, em algumas obras, a vénia aos historiadores encartados vai ao ponto de lhes citar longos extratos, que entorpecem o relato, embora a sua intenção seja claramente a de credibilizar a narrativa.
Naturalmente, não se esperaría de MD visões historiográficas inovadoras que pusessem em causa a ideologia dominante: estávamos em plena hegemonía da versão heróico-majestática do credo nacionalista. Mas isso não implica que se contentasse com o pseudo-unanimismo oficial em relação às “figuras” da História portuguesa: o autor não esconde a sua clara aversão a D. João III (“mostrou sempre o maior desdém pela opinião do reino”), cuja pusilanimidade (“criminosa” ou “negligente”?) responsabiliza mediatamente pela perda da soberania em 1580.
A verdade é esta: quaisquer que sejam as reservas que o incessante labor literário de Mário Domingues possa suscitar-nos, não encontro hoje, nos nossos catálogos, narrativas biográficas que evoquem com tanta vivacidade e sentido dramático momentos e figuras maiores da História que nos fez. Acabo de o comprovar relendo o D. Sebastião, o homem e a sua época, publicado pela primeira vez em 1963: tem como referência o estudo fundamental de Queiroz Veloso, de 1935; mas o talento narrativo é o do jornalista profissional, biógrafo e anarquista. As suas “evocações” fazem muitas das “biografías” que por aí andam parecer trabalhos escolares mal-enjorcados. J
Não encontro hoje, nos nossos catálogos, narrativas biográficas que (como as de Mário Domingues) evoquem com tanta vivacidade e sentido dramático momentos e figuras maiores da História que nos fez