Zeferino Coelho, 76 anos, licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, militante contra a ditadura, editor, foi distinguido, nesta qualidade, com o importante Prémio Vasco Graça Moura -Cidadania Cultura, instituído pela Estoril-Sol, no valor de 20 mil euros. Fundador e desde sempre diretor da Caminho, o júri pôs em destaque o seu contributo para a literatura e língua portuguesa, pelo conjunto da sua atividade, mormente como editor de José Saramago, desde Levantado do Chão (1980) até à morte do escritor, com quem tinha uma forte relação, e de mais sete prémios Camões: José Craveirinha, Sophia, Luandino Vieira, Mia Couto, Arménio Vieira, Germano Almeida e Paulina Chiziane
Nasci em 1945, poucos dias depois da tomada de Berlim pelo Exército Vermelho, da rendição dos nazis que se lhe seguiu e do fim da II Guerra Mundial na Europa. Mas nasci em Portugal, onde, há já quase 20 anos, dominava Salazar e o seu regime fascista. Não beneficiei, portanto, plenamente desse ambiente de esperança que se viveu na Europa nos anos que se seguiram ao fim da guerra. E isso marcou decisivamente a minha vida e a de todos os portugueses da minha geração, da que lhe precedeu e da que lhe seguiria. O fascismo durou quase meio século.
Para tornar as coisas ainda piores, nasci numa pequena vila do Norte de Portugal, Paredes, com uma população maioritariamente camponesa, de que o meu pai era um exemplo típico: trabalho de sol a sol segundo o ritmo da natureza, produção agrícola escassa para consumo próprio, em parte, e destinada ao mercado. Exatamente o suficiente para sustentar uma família de cinco filhos, já que eu, o neto mais velho, vivia com e a cargo do meu avô. Por isso pude estudar e desse modo, chegada a hora, partir para novos horizontes, mais amplos do que os que oferecia uma vila de província naqueles tempos sombrios no Norte de Portugal.
Naquela quietude, própria da infância, por um lado, e imposta pelo medo da repressão fascista, por outro, assisti a três acontecimentos que, sem eu dar por isso, me prepararam para o futuro. Vou descrevê-los rapidamente.
Um deles foi o facto de, em meados dos anos 50, me ter sido recusado o passaporte que eu pedira para realizar uma viagem a França para uma estadia de duas semanas em instalações preparadas pelo Ministério da Educação francês, num programa de férias para jovens de diversos países a que eu me candidatara e no qual fora aceite. Pouco depois do pedido, que entreguei numa agência de viagens no Porto, recebi uma contrassenha para me apresentar no posto da GNR. Lá fui, expliquei o que pretendia e porquê, com provas documentais em português e em português traduzido por mim do francês.
O guarda olhava para mim com ar espesso e desconfiado e de repente disse: “Mas o seu pai não tem dinheiro para o mandar passear para estes países todos.” Perante a minha perplexidade – eu só queria ir a França e não sabia que nesse tempo os passaportes indicavam todos os países para onde se podia ir com eles –, o guarda deu-se por satisfeito e mandou-me sair. Alguns dias depois recebi uma carta da agência de viagens a comunicar-me que as autoridades me tinham recusado o passaporte com base num parecer negativo da GNR da minha terra. Acho que nesse dia me tornei um antifascista avant la lettre.
O outro acontecimento que recordo muito vivamente foi o aparecimento na minha terra de uma biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian, ainda nesses anos 50. A carrinha Citroën, com o seu motorista-bibliotecário, chegava de 15 em 15 dias, aí pelas oito horas da noite, e estacionava na berma de estrada Porto-Vila Real, junto do jardim principal da vila. E já lá estávamos nós, os frequentadores, talvez umas dez ou 15 pessoas, não mais. E com uma particularidade para mim estranha: nunca vi lá ninguém que fizesse parte das minhas relações. Eu próprio não sei explicar o que me levava lá, mas a verdade é que nunca faltava. Entrava para dentro da carrinha, percorria as estantes e escolhia por palpite. Às vezes acertava, outras vezes não. Mas lia tudo e fazia-o com paixão. Nunca li tanto como durante os meus 12-15 anos. Por isso o senhor Gulbenkian, acolitado pelo Branquinho da Fonseca, acabaram por ter um papel, este positivo, na minha vida.
Outro acontecimento ainda de que me lembro com toda a clareza verificou-se em 1958, tinha eu 13 anos. Andava com amigos a correr atrás dos pássaros, particularmente os pintassilgos, muito abundantes naquele jardim e que exibiam nas penas uma mancha amarela que os tornava muito atraentes, quando ouvi o ruído de uma pequena multidão vindo do outro lado do jardim, junto à já referida estrada, que atravessava a vila. Fui a correr ver o que se passava e encontrei um ajuntamento, com talvez umas 50 pessoas, não mais, todas voltadas para um homem que gesticulava em cima de uma mesa. Era um homem alto, careca, que gritava não me recordo o quê com a cabeça muito erguida e que fazia muitos gestos com os braços. De súbito, e no meio de grande alarido dos presentes, muitos gritos e muitos gestos, o homem desceu da mesa, meteu-se no carro e partiu em direção ao Porto. Disseram-me então que se tratava do general Humberto Delgado, que andava em campanha eleitoral, e que os democratas da minha terra, aqueles que não tiveram medo de sair à rua, foram saudar e desejar-lhe a vitória.
O resto da história é conhecido. Mas marcou-me muito profundamente porque foi o primeiro ato político da Oposição a que assisti. Depois de tudo voltar ao silêncio habitual revi esta cena para mim tão espantosa. Sobretudo porque lá no meio da agitação uma das pessoas mais entusiasmadas e ativas era a Dona Preciosa, minha vizinha já com uma certa idade e que eu via sempre tão séria e tão pacata. Apercebi-me de que, para além daquele mundo imóvel, que tinha como alicerces a teoria definida pelo governo e a prática imposta pela polícia de que uns mandam e outros obedecem, para além dele e por detrás dele havia outro mundo onde cada um pensa pela sua cabeça e age em conformidade.
Foi com estas bases, de cujo significado não me apercebia porque estavam misturadas e de facto soterradas sob um espesso manto de ignorância e provincianismo, que me apresentei no Porto no outono de 1962 para começar a frequentar o curso de Filosofia de Faculdade de Letras, criada nesse mesmo ano. E fui encontrar um ambiente radicalmente diferente daquele donde vinha. Em primeiro lugar os meus colegas de curso, ou de outros cursos, todos mais velhos do que eu, alguns já pais de família, todos tinham tido, e alguns ainda tinham, uma atividade política consistente, quase todos como militantes ou ex-militantes do Partido, como era designado o PCP.
Refiro, por exemplo, o Edgar Correia, pai do anterior presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina (com ele fiz parte do mesmo “organismo” partidário durante todo o tempo em que estive no Porto); o Zé Bento, que ganhava a vida como revisor de provas no Jornal de Notícias e era casado com a Marcela Torres, irmã do Cláudio Torres, filhos do historiador Flausino Torres; o Mário Alves, já casado e com uma filha da minha idade, que trabalhava como delegado de propaganda médica no Laboratório J. Couto, fabricante da pasta medicinal Couto, “a única que não tem clorofila”; o João Teixeira Lopes, pai do Teixeira Lopes membro do Bloco de Esquerda, que tinha vindo de Angola e nos falava das maravilhas do Cineclube de Luanda, com quem eu fui tantas vezes ao cinema que acabou por chegar um dia em que já não havia no Porto mais nada para ver; o César Oliveira, que tinha sido expulso de Coimbra e que, com a sua voz rouca, dominava todas as conversas e pregava a violência revolucionária em altos berros no Café Ceuta; o Vítor Branco, que veio expulso do ISE e não parava quieto, mal chegou criou a UNICEPE, que ainda existe.
Em resumidas contas foi este o ambiente em que me integrei no Porto dos anos 60. Por isso não é de espantar que pouco depois de chegar me tivesse tornado militante do PCP: o que ainda hoje me soa estranho é ter ido lá parar por iniciativa do Eduardo Guerra Carneiro, o poeta sensível que, nas homéricas discussões políticas e ideológicas características da época – nada se fazia sem se examinar à lupa a sua adequação aos princípios teóricos que deviam guiar a ação prática – acabava sempre a glosar o Cesariny dizendo que “pequenos burgueses somos nós todos, ou ainda menos”. E não espanta também que viesse a participar nas “eleições” de 1969 como candidato da CDE, Comissão Democrática Eleitoral, pelo círculo do Porto.
Falo aqui destas “eleições” não pela sua importância, que foi grande, mas pelo facto de ter sido em parte graças a elas que me tornei editor. Em 1969 terminei o curso e com isso adquiri uma espécie de estado civil que se pode definir como “estar à espera de ser chamado” para a tropa. Esta espera significou para mim uns dois anos e meio. E foi então que fui abordado pelo editor José da Cruz Santos, um homem de esquerda que me conheceu nessas ”eleições”, e me perguntou se eu queria fazer um part-time na sua editora, a Inova. Disse-lhe que sim e ainda hoje acho que fiz bem. Comecei então a passar as tardes sentado a uma secretária que estava encostada a uma outra onde trabalhava o Armando Alves, nesse ano e nessa função um renovador do desenho gráfico dos livros. Ele desenhava as capas e eu fazia os textos que seriam integrados nelas. Para além disso revia traduções, contactava com autores (lembro-me de contactar, por exemplo, com o Óscar Lopes, o Eugénio de Andrade, o Urbano Tavares Rodrigues, o Alberto Ferreira e vários outros).
Com isto comecei a aprender a diferença entre versais e versaletes, que os títulos dos livros vão em itálico e os dos capítulos vão em redondo, que um caderno de 16 páginas contém dois cadernos de oito, o que é um ozalide e para que serve, etc., etc. Quando no dia 2 de janeiro de 1972, em vez de me apresentar em Mafra, passei à clandestinidade, era já um editor quase feito, que interrompia momentaneamente a sua atividade em nome de outros valores de que não queria abdicar.
Foi apenas cinco anos depois, em 1977, que, estando eu a cumprir o serviço militar nos Serviços Psicotécnicos do Exército, localizados na Avenida de Berna em Lisboa, reencontrei nos cafés e restaurantes da zona os meus camaradas e amigos do Porto, alguns deles, claro, e sobretudo o Chico Melo e o Vítor Branco. Nessa altura eles trabalhavam ali perto, na Avenida Santos Dumont, numa empresa chamada Editorial Caminho e numa distribuidora chamada CDL. Aquela produzia o jornal o diário, e esta distribuía-o. Eles disseram-me que tinham o projeto de aproveitar estas estruturas para publicar também livros e, tendo eu sido já um profissional nesta área, convidaram-me a juntar-me a eles. Como estava farto da atividade política, que aliás sempre detestei e só realizei com muito esforço, por sentido do dever, decidi aceitar. Fui ao Porto declarar as minhas intenções ao PCP (custou-me muito levar esta decisão por diante), o Edgar Correia tentou demover-me mas eu não cedi ao sentimento, no final de dezembro “fui para a peluda”, como se diz no estranho dialeto dos quarteis, e em janeiro de 1977 já estava a trabalhar na Avenida Santos Dumont. Foi uma decisão para o resto da minha vida.
Mudei-me então com mulher e filho para Lisboa. Os primeiros anos da Caminho não foram fáceis. Cheguei a ter dúvidas sobre se a decisão de publicar livros fora sensata, se não seria melhor ir para o liceu ensinar Filosofia. Mas os meus camaradas demoveram-me. Há lá atividade mais emocionante que fazer livros? Vamos em frente. E fomos. De súbito o mundo dos livros, que se nos apresentava escuro, começou a clarear. Em 1979 criámos um prémio para originais de literatura juvenil. Ganhou a Alice Vieira com um original chamado Rosa, Minha Irmã Rosa, que foi um êxito imediato. No ano seguinte o José Saramago presenteou-nos com um romance fabuloso chamado Levantado do Chão, que espantou toda a gente pelo que trazia de novo à literatura portuguesa. Nós estávamos à espera dele, pois no ano anterior tínhamos publicado uma peça de teatro sua chamada A Noite, mas não contávamos que ele viesse apenas alguns meses depois e com um livro daquela qualidade.
Em 1982 vivemos dois acontecimentos memoráveis para a editora: o José Saramago entregou-nos o Memorial do Convento, que o confirmaria como o maior romancista português do século XX (acho que já posso exprimir-me assim); e a dupla de escritoras Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, completamente desconhecidas porque nunca tinham publicado nada, propuseram-nos a edição de um livro de aventuras para jovens chamado Uma Aventura na Cidade. O livro estava excecionalmente bem escrito e sobretudo bem concebido. Imaginámos que poderia ser o início de uma coleção de grande êxito. Pedimos-lhes que escrevessem de imediato outro livro para publicarmos dois em simultâneo. Elas fizeram-no. Convencido o Arlindo Fagundes a fazer as ilustrações, os livros saíram em outubro de 1982, há 40 anos. Assim começava a Coleção Uma Aventura, de que até hoje se venderam mais de oito milhões de exemplares. Para além de um êxito de vendas, esta coleção desempenhou, e continua a desempenhar um papel destacado na difusão do gosto pela leitura entre os jovens. Coisa que não é nada fácil.
De tudo isto a Caminho saiu muito reforçada e prestigiada. E daí em diante tudo se tornou mais fácil. Em 1983 foi o Mário de Carvalho, em 1987 foi o Mia Couto, em 1991 foi o Daniel Sampaio, ainda em 1991 foi a Sophia, e por aí fora, com uma atividade muito intensa, abarcando muitas áreas da literatura e da ensaística. Muita gente trabalhou na editora, eu fui apenas mais um, e se estou a contar esta história é porque dessa equipa só eu continuo por cá.
Em 2007 decidimos todos vender a editora. Foi uma decisão unânime, pois pressagiávamos tempos difíceis, pelos quais já tínhamos passado e que não queríamos reviver. Inesperadamente, a integração na Leya foi relativamente fácil e, apesar de alguns sobressaltos, bastante rápida. Foi-nos dito que a compra da editora correspondia ao objetivo de constituir um grupo editorial no qual uma editora com as características da Caminho fazia falta. Que por isso não tinham a intenção de alterar nada na programação e queriam que eu fosse para lá fazer o que sempre tinha feito, da mesma maneira que o tinha feito. E este compromisso foi respeitado.
Nas novas condições ocorreu-me que o melhor que tinha a fazer seria consolidar o esforço que já vinha sendo feito para captar para a editora alguns escritores mais novos, da geração mais recente, que estavam a surgir com obras muito originais e de grande qualidade. E é nisso que a Caminho está agora empenhada, tentando construir um novo catálogo com base na qualidade literária e, recorrendo à experiência vivida, realizando um trabalho de edição e promoção dos livros em constante diálogo com os autores, que são, ao fim e ao cabo, tudo o que interessa no mundo da literatura. Nomes como Isabela Figueiredo, Joana Bértholo, Patrícia Portela, Sandro William Junqueira, Alexandra Lucas Coelho, ou, entre os africanos mais novos, Ondjaki, João Paulo Borges Coelho e Paulina Chiziane, acrescentam muito valor a um catálogo construído ao longo dos anos. É certo que alguns autores importantes, por estas ou aquela razão, abandonaram a Caminho. Fiquei desgostoso com esse abandono e acho que fizeram mal. Mas a decisão é deles e eu respeito-a.
Não posso, nem quero, deixar passar este ano do centenário do nascimento de José Saramago sem lhe fazer uma referência particular. Trabalhei com ele dia após dia, ano após ano, desde 1979, tinha ele 57 anos e eu 34, até à sua morte em 2010, tinha ele 88 anos e eu 65. Esse trabalho foi uma espécie de cavalgada sem descanso, ele escrevendo e eu e toda a equipa da Caminho tratando-lhe dos livros. Em 1998 a sua obra teve um reconhecimento universal com a atribuição do Prémio Nobel. Como tal acontecimento não fazia parte dos seus planos de vida, continuou a escrever incansavelmente e todos na editora continuaram a tratar-lhe dos livros. Em 2010 visitei-o na sua casa de Lanzarote. Estava já muito mal. Já não falava e era a Pilar que lhe dava de comer. Regressei a Lisboa e poucos dias depois Juanjo, o filho da Pilar, telefonou-me a dizer que ele acabava de morrer.
Em todos estes anos a minha vida está marcada pela sua existência como autor da Caminho, e muitas vezes fui apresentado a interlocutores para mim desconhecidos com estas palavras: é o editor de Saramago. Ainda hoje isso acontece. E eu sinto um imenso orgulho quando me apresentam a alguém dizendo: é o editor de Saramago. Devo-lhe isso, e não é pouco.