28 horas na vida de uma mulher
Feitas a contas, são mais 20 do que o clássico de Fellini. Mas o filme de Adriano Mendes só tem em comum com o do realizador italiano uma ideia de liberdade, de fazer cinema fora dos formatos. Depois de se ter estreado no IndieLisboa, 28 ½ chega às salas do cinema. O JL falou com o realizador
Nascido na Sertã há 33 anos, Adriano Mendes desde muito novo que alimenta o desejo de ser realizador de cinema. Logo aos oito anos começou a fazer curtas-metragens. E desde aí que o processo não tem parado. Com naturalidade, foi para Lisboa, estudar na Escola Superior de Teatro e Cinema, e por lá ficou. Foi também na capital que conheceu Anabela Caetano, atriz principal das suas longas, com a qual acabou por casar. Após várias curtas exibidas e premiadas em festivais, em 2014, aventurou-se numa longa-metragem, O Primeiro Verão, aplaudida e premiada no IndieLisboa. Agora, mostra-nos 28 ½, retrato geracional, gesto livre com espaço para o improviso, em que acompanhamos 28 horas na vida de uma mulher de 28 anos, que está a meio de qualquer coisa.
O título do filme refere-se à idade da personagem, mas só pode ser entendido também como uma homenagem a Fellini. É um realizador que o marcou?
Essa referência surgiu mais tarde. O filme já estava feito quando surgiu a ideia do título. Nunca trabalhei com referências, de forma consciente. Mas obviamente há uma grande admiração pelo trabalho do Fellini. Identifico-me muito com o rasgar que vemos no filme dele. Não há assim tantos realizadores com uma alma pronta a explodir. No caso do Fellini, era o oitavo e meio filme dele. Aqui a personagem terá 28 anos. E este meio coloca-me num ponto que me interessava… por estar num intervalo, por não ter trabalho, por a relação com o companheiro não estar a correr bem… Além disso, o 28 também é um número simbólico, das fases da lua, do ciclo da mulher… Está ligado a um lado da natureza… E também é um dos números ligados à cidade de Lisboa.
Falava de Fellini, mas o filme também segue uma ideia parecida à de Stefan Zweig em 24 horas na Vida de uma Mulher, repescada por Agnés Varda em Duas Horas na Vida de uma Mulher
A ideia é que o filme também percorra 28 horas na vida dela. Não é explícito, aquilo se calhar até pode parecer uma semana. Mas se formos ver o filme ao detalhe há pistas que nos indicam essa duração. É sempre importante definir a janela temporal. No meu filme interior passava-se num verão, aqui interessou-me explorar um dia.
O tempo interessa também de um outro ponto de vista. Há uma parte significativa do filme que se passa quase em tempo real, sem cortes, criando sequências extremamente longas. Porquê?
Pode-se criar uma narrativa do tipo que cada minuto conta para fazer avançar a história e mais detalhes. Não me interessava isso, mas antes passar a bola ao espectador e ter a ideia de tempo real, criando uma tensão à volta do que se passa na cena ou na extensão da própria cena, como acontece com o jantar. Interessam-me mais os interstícios narrativos, os gestos e os olhares. Mas no jantar, apesar de tudo, há pequeníssimas elipses.
É um filme que pede muito de uma atriz, que tem quase em permanência a câmara em cima. Como foi escolhida a Anabela?
A Anabela já foi protagonista do filme anterior. É a minha mulher, o que ajuda a trabalhar questões. Ela consegue expressar o indizível
Não é uma atriz profissional?
Ela veio para Lisboa aos 17 anos para um musical do Filipe Lá Féria e depois acabou por perceber que não era aquilo que queria. Tirou outro curso e está a fazer o doutoramento. Sempre gostou de atuar e vai fazendo de vez em quando.
E os outros atores?
Temos atores profissionais a fazer cenas mais curtas, como o Miguel Moreira e o Guilherme Noronha. Os outros são pessoas que gostariam de ser atores, mas têm outros trabalhos.
Essa liberdade em que foi feito o filme que limites teve? Como se construiu na realidade?
Tal como o anterior, começámos a fazer o filme sem dinheiro, a filmar aos bocadinho e a juntar recursos, tentando avançar com essa pulsação de liberdade… tentando quase esquecer que há contas para pagar. Felizmente tivemos o apoio do ICA para a pós-produção. Mas custa-me falar sobre o próprio processo, porque é algo muito íntimo… Tal como quando vemos um espetáculo de ilusionismo queremos saber o truque, mas também queremos ser enganados. Eu também fico hesitante em revelar o próprio processo, como se também estivesse a trair qualquer coisa.
No comboio, que é uma das grandes sequências de filmes, aborda-se de forma inteligente grandes questões da realidade suburbana, incluindo o racismo. Foi essa a tua intenção?
Não sei se a minha abordagem é assim tão programática. Isto estava lá desde o início, mas eu não queria trabalhar à luz de uma certa perceção geral. Houve até quem pensasse que eu era racista. Podemos antever alguns dos valores da personagem principal que se afastam de tal ideia. Mas interessava-me a energia de ter aquelas pessoas ali. Que o conflito brotasse, mas não na forma politicamente correta O comboio permitiu-me criar um dispositivo narrativo em que os personagens estão presas. E, como se fosse uma experiência social, perceber como as pessoas se comportam fechadas naquele espaço. As situações de conflito são muitas vezes reveladoras das nossas crenças, daquilo que somos.
E no comboio aquela personagem, com traços de anti-heroína, transforma-se numa autêntica heroína…
Como dizia a outra personagem à Sílvia, “tu parecias uma deusa ali”. Interessou-me quando o mendigo lhe pede e ela não dá. Ela estava sucumbida nas suas coisas, nos seus pensamentos. No entanto, no comboio revela-se um instinto qualquer e ela age. Interessa-me trabalhar esses aspetos. Para mim o cinema é uma coisa de minúcia.
No jantar há também um retrato geracional… De uma juventude europeia, próxima, provavelmente fruto do programa Erasmus…
A ideia do jantar veio de umas plataformas que havia, no auge do turismo, em que as pessoas se inscreviam para receber estrangeiros em casa num jantar. A ideia era essa, embora não esteja explícito no filme. Isso não é o mais importante. Ele é italiano e ela neozelandesa. Já têm um filho… São um bocadinho mais velhos e estão numa fase mais avançada do que os outros portugueses que lá estão.
É uma sequência muito longa e quase sem cortes…
Fiz várias montagens pelo que já estava muito dentro. O Pedro Filipe Marques entrou mais tarde para fazer a montagem e demo-nos muito bem. Os filmes também podem ser feitos para as pessoas saírem do cinema. Tanto na cinemateca como no Indie muitas pessoas vibraram com o jantar. É um convite a que duas pessoas estranhas se sentem à nossa mesa a jantar. Um teste à capacidade de acolhermos o outro.