Com O Caçador de Elefantes Invisíveis, Mia Couto regressa ao conto, género da sua estreia literária em 1987, com Vozes Anoitecidas. Estes textos curtos são, por excelência, espaços de revelação da arte e mestria efabulativas do autor que apresenta sucessivos e sucintos retratos de pessoas e situações, dando a conhecer a complexa teia de que é feita a nacionalidade moçambicana.
O livro reúne 26 contos, inicialmente publicados como crónicas na revista Visão, que o autor revisitou num interessante exercício de reescrita, a partir do qual podemos apreender o modo poético na sua escrita da ficção, que é antes de mais um trabalho oficinal de depuração e precisão (diferenciação gráfica do discurso direto; troca de vocábulos; alteração de pontuação; mudança de tempos verbais; reestruturação da frase…).
O cotejo das duas versões das narrativas constitui-se como a possibilidade de o leitor partilhar com o autor os trilhos da criação diegética, de seguir os passos que o conduziram até à versão final. É todo um campo de estudo de crítica genética que se abre e que não deixará certamente de ser objeto de análise.
O título da coletânea e a ilustração que o acompanha criam um horizonte de leitura, onde pespontam as temáticas em torno dos quais os entrechos se constroem. Enquanto a desenho da capa, da autoria de Susa Monteiro, que também ilustra as crónicas da Visão, apresenta um homem que se prepara para empreender uma viagem, o título do livro, retomando a designação de um dos contos, aponta para a importância de se atentar nas coisas invisíveis que nos rodeiam. A aliança entre o título e a imagem, um desenho que ilustra um conto que não foi selecionado para este livro, deixam-nos antever histórias de viagens ao encontro do outro, durante as quais, pelo poder do sonho, da palavra, da empatia, se torna visível a complexidade de que somos feitos.
Disso nos fala o protagonista do conto “O vice-viajante”, um sobrevivente dos ataques terroristas em Cabo Delgado, salvo da errância a que estava condenado por ser um contador de histórias: “Com as minhas histórias vou empurrando as margens do rio. O motorista agradece a ilusão de uma ininterrupta viagem” (114), enquanto o conto “De reis mortos e águas vivas” coloca a questão de mundividências em diálogo. É a história da perplexidade dos habitantes da aldeia de Mantidzia perante os intentos do arqueólogo que para lá se desloca em busca da sepultura de um rei: “O homem queria encontrar o passado? Procurasse dentro das pessoas. Escutasse conversas entre os vivos e os mortos. E se tudo isso não servisse, usasse o sonho, que, como todos sabem, é uma pá para escavar lembranças”, 69).
Neste comentário dos aldeões inscreve-se uma questão central da escrita de Mia Couto, que está reiteradamente presente na sua obra. Referimo-nos à representação da identidade do seu país, alicerçada numa relação dialética entre várias culturas. À semelhança de tantas outras personagens da obra, o arqueólogo e os habitantes da aldeia encetam um diálogo sobre uma realidade concreta, uma escavação, mas enformada por cosmovisões distintas, alicerçadas em conhecimentos, crenças, tradições, representações diferentes das vivências humanas.
O desfecho da busca do cientista, na qual participou toda a aldeia, é reveladora da pluralidade de perceções. Quando da cova funda, aberta com o contributo de muitos, surgiu água em vez de artefactos reais, os presentes tiveram reações antagónicas e à desolação do arqueólogo contrapôs-se a euforia dos aldeões que gritaram “O rei, o nosso rei!” (73), levando o cientista a concluir que “reinava ali uma outra visão do mundo. Uma visão mais poética, mais pura e mais profunda” (74).
Por vezes a essa outra visão do mundo acresce uma outra língua para a expressar. Nesse caso, o diálogo é apenas possível se mediado por um terceiro elemento a quem cabe a tradução de palavras, mas sobretudo de ideias, conceitos, em suma, cosmovisões. Dessa tarefa nos fala o conto que dá título à obra. Quando Tsatso, o caçador, colocava uma armadilha numa picada, recebe a visita de uma brigada dos serviços de saúde para o informar dos cuidados a ter para se proteger da Covid 19. Cientes da diversidade de línguas, os técnicos vindos da cidade traziam dois tradutores, no entanto esquecerem de prover a não menos importante necessidade de adequar as recomendações ao interlocutor, dando origem a desencontros de comunicação de grande comicidade e humor.
Se Tsatso não tem dificuldade em perceber a perigosidade de algo invisível, afinal também ele caçava “criaturas invisíveis”, não percebe a relevância do distanciamento social, se está só na picada, nem a de não entrar em casa calçado, se nem sapatos tem, quando lhe falam da necessidade de aliviar o hospital, a sua surpresa é total, porque essa “era uma das criaturas mais invisíveis naquela região” (26).
Também o protagonista de “Um gentil ladrão” é confrontado com um mundo que desconhece, ao ser surpreendido por um estranho homem mascarado que lhe aponta o que lhe parece ser uma pistola e lhe fala de uma estranha doença. Acreditando tratar-se de um assalto, é seduzido pelos modos gentis do intruso, acatando as suas indicações, porque “um ladrão tão desajeitado, só pode ser um bom homem” (16).
De conto em conto, num registo ponteado de humor e de poeticidade, diferentes vozes narrativas vão desenhando um retrato da sociedade moçambicana, trazendo para as histórias os problemas do tempo presente: a guerra, os ataques terroristas, a corrupção, o derrube das estátuas, a pandemia, a solidão, o amor, em textos que interpelam e emocionam, transformando cada leitor em caçador do invisível.